(Temos de convir que no seio dos 27 podem emergir as mais
diversificadas e por vezes estranhas geometrias variáveis. Até por vezes pode
dar a ideia de que personagens da periferia como Sánchez ou até Costa assumirão
algum protagonismo. Mas esgotados os primeiros minutos do jogo ou até a
primeira parte percebe-se que o eixo franco-germânico tem muita força motora,
recordando a ideia de que uma das razões fundamentais do início da União foi a
necessidade de dissipar a desconfiança francesa face aos alemães. Pois, uma vez mais, o eixo moveu-se. Só que o mundo e a União estão
diferentes e não é seguro que, movendo-se, o eixo agora de Merkel e Macron
consiga fazer mover os mais renitentes. Tenho a sensação, algo estranha, de que
estamos num momento-chave, para o mal ou para o bem, da construção europeia, se
é que ainda lhe possamos chamar “construção”.
Merkel e Macron vieram ontem a terreiro unir forças para propor um grande
plano de reconstrução europeia de 500 mil milhões de euros, financiado através
de uma ida mais do que incremental da Comissão Europeia ao mercado que obteria
junto desse mercado e por empréstimo o que seria posteriormente dirigido aos
Estados-membros em função das suas necessidades de investimento e de
recuperação económica. Em post anterior, já tinha analisado que esta era uma
das alternativas possíveis para sair da caixa e do incrementalismo insuficiente
que se desenhava entre os Estados mais tímidos.
Com esta abordagem conjunta, Merkel e Macron saldam contas internas face a
expectativas criadas. Não me parece precipitado dizer que, com esta ofensiva
que faria da Comissão Europeia uma devedora em grande escala mas aparentemente
de baixo risco, Merkel remete para as calendas a discussão em torno dos “corona
bonds” e, simultaneamente, retira a França da influência das tais geometrias
variáveis à margem do eixo FG, leia-se sobretudo a aproximação a Espanha,
Portugal e Grécia. Quanto a Macron, permite-lhe de novo retomar a iniciativa e
mostrar que quem porfia mata caça e ninguém parece ter dúvidas de que o
presidente Francês ficará na história da União como o exemplo mais ilustrativo
de presidente acossado no plano interno e híper-voluntarista no plano europeu.
A ele muito devemos a permanência de alguma energia europeia. Apesar de todos
os erros e dúvidas, não esqueço o seu papel crucial na derrota da primeira vaga
de populismo de direita em França, barrando o caminho a Marine Le Pen com um
debate televisivo que ficará como um dos mais belos momentos de pura
argumentação política.
Como referi na introdução, o eixo FG move-se e isso significa que pode
haver de novo um motor de desbloqueamento de empecilhos, armadilhas e de toda a
tralha nacionalista. Mas a União está diferente e a força dissuasora do “motor”
terá ela própria que se reinventar.
Uma das questões que fica por “traduzir” é o modo como esta proclamação se
transforma num plano a 27 e é trabalhada pela Presidente da Comissão Europeia.
Entre outros aspetos, há uma questão crucial que os mercados financeiros vão
rapidamente colocar para avaliação de risco. A Comissão Europeia (CE) vai ao
mercado pedir um grosso empréstimo com perspetivas de reembolso e não
aparentemente como dívida perpétua. O que suscita a questão de saber como será
reembolsado. Merkel avançou para espanto de alguns que o empréstimo será
considerado despesa orçamental da própria CE e não como empréstimo aos países
necessitados. A sua aplicação far-se-á coerentemente através de programas
europeus, restando a interrogação se vai haver inovação de tipologia de
programas ou se, pelo contrário, serão utilizados vias existentes como os
programas operacionais.
O que me parece evidente é que as posições alemãs avançaram. Abrir-se-á uma
intensa negociação sobre os termos de articulação deste impulso com o do quadro
financeiro plurianual. E subsistirá sempre a questão de saber como será o
empréstimo da CE reembolsado. Por isso, digo que a ideia de que o eixo FG se
moveu é por si só um momento importante. Já os termos em que esse movimento
arrastará a União serão porventura mais interrogados do que em outros tempos.
Mas pelo menos abre-se uma janela para os cidadãos europeus não se desligarem
completamente do projeto. Só o mero facto de ser a CE a ir ao mercado e não
cada Estado-membro criará a perceção de que a União vale alguma coisa.
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