sexta-feira, 15 de maio de 2020

CAPABILITIES (Take 2)



(Regresso ao tema das “capabilities” enquanto contributo para explicar o desempenho diferenciado dos países na sua resposta à pandemia. Hoje é tempo de um take 2, mobilizando o modo como as ciências da organização e a gestão estratégica trabalharam o conceito. Por essa via, talvez nos aproximemos mais do que necessitamos para compreender o tal desempenho diferenciado.

As virtualidades da língua inglesa permitiram-nos compreender a diferença entre “capability” e “capacity”. Esta última (capacidade de) convoca-nos, aparentemente, para uma dimensão mais estática de utilização imediata de recursos e faculdades que temos ao nosso alcance. Em contrapartida, as “capabilities” apontam para processos mais construídos designadamente de aprendizagem ao nível dos indivíduos, das organizações e, dizem os mais entusiastas, dos países e sociedades como um todo. Esta progressão do indivíduo para o todo não é isenta de dificuldades metodológicas, mas vamos ignorá-las por conveniência de foco.

Se pensarmos bem, esta distinção é relativa. Na verdade, podemos dizer que a interpretação estática pressupõe sempre uma acumulação de experiência e aprendizagem. Os recursos de que dispomos em determinado momento não são situações de tábua rasa. Resultaram de processos de aprendizagem. Ora, é esta perspetiva mais dinâmica e de processo de construção que as capabilities pretendem abranger.

Por outro lado, quando mobilizamos “recursos” existentes nunca o fazemos como se de um somatório se tratasse. Fazemos a diferença porque combinamos eficazmente esses recursos e essa atividade combinatória define bem a dimensão das nossas competências, que são sempre aferidas em função de uma situação concreta que exige resposta. Por isso, a ideia de capacidade de mobilização de recursos existentes não será tão estática quanto isso. A ideia de combinatória é o oposto dessa visão estática da nossa capacidade de resposta.

Por esta via, percebemos que temos campo frutífero para avançar na explicação do desempenho diferenciado dos países na resposta à pandemia. Os países foram obrigados a responder sem a possibilidade de concretizar grandes investimentos de conhecimento. Mobilizaram recursos existentes, seja no plano nacional, seja no mercado global através da importação ou dádivas. A resposta foi um exemplo de combinação de recursos existentes. Acaso houvesse tempo para grandes investimentos de preparação de resposta, por exemplo através do conhecimento, os países mais pujantes teriam obviamente a melhor resposta entre pares. Isso não aconteceu, veja-se o caso dos EUA e do Reino Unido. O que significa que houve países mais competentes nas combinatórias de recursos que utilizaram. Por curiosidade diga-se que alguns países, a Suécia à cabeça, entre os recursos que mobilizaram estavam os próprios recursos culturais, neste caso a cultura de distanciamento social que os Suecos invocaram para atribuir à população uma quota de responsabilidade na gestão da crise. O meu ponto não é que essa escolha tenha sido eficaz, pelo menos com o referencial de tempo que temos hoje. O meu ponto é que a paleta de recursos mobilizados é vasta e essa escolha combinatória representa em si própria uma competência.

Para uma resposta futura, pergunto: que recursos mobilizaram os Portugueses para a sua resposta à pandemia?

A convocação da abordagem das “capabilities” pelas ciências da organização e pela gestão estratégica tem várias inspirações e este não o espaço adequado para o documentar. Gostaria apenas de invocar aqui os contributos de David TEECE (University of Berkeley). Embora haja trabalhos pioneiros anteriores a esta data de referência, 1997, é a esta data que se reporta um dos artigos mais citados do autor, escrito em parceria com Gary PISANO e Amy SHUEN: “Dynamic Capabilities and Strategic Management” publicado no Strategic Management Journal.

Dois aspetos merecem destaque nesta apropriação do conceito de “capabilities” pelas ciências da organização e pela gestão estratégica.

O primeiro é a sua herança e inspiração. A abordagem prolonga a perspetiva de que a resposta competitiva das empresas às exigências da rápida mutação tecnológica deve ser essencialmente explicada através dos seus recursos internos e do modo como as empresas os combinam. A inserção no mercado não é esquecida, até porque é por aí que emergem os desafios aos quais é imperioso responder e não é indiferente em que organização de mercado a empresa está a trabalhar (mais concorrencial ou oligopolista, por exemplo). Mas a resposta projeta a empresa para a mobilização e combinação dos seus recursos e isso é que fará a diferença, com a tecnologia a comandar a acumulação de conhecimento interno. Para os mais conhecedores chamamos a esta inspiração ou família de referenciais teorias baseadas nos recursos (resouce-based theory).

O segundo aspeto é a nuance de adjetivação que TEECE introduz na sua abordagem, pois é de “dynamic capabilities” que ele fala. Em meu modesto entender, TEECE quer enfatizar que não basta reconhecer o caráter reconhecidamente dinâmico, mas implícito, do conceito de “capability”. É necessário vincar mais a ideia de processo de construção, pois é nesses processos de combinação (em regra não imediatamente apropriáveis pelos concorrentes) que as empresas farão a diferença. Daí as “dynamic capabilities”.

A síntese possível do take 2 aponta para as grandes exigências de resposta rápida que a pandemia provocou. Como é compreensível, não podemos dizer que os recursos existentes não contaram na resposta que os países concretizaram. Mas o meu ponto é que, embora tenham contado, não esgotaram a explicação do desempenho diferenciado. Todos nos recordamos de ouvir uma das vozes mais consideradas na situação portuguesa, o especialista de doenças respiratórias Filipe Fróis a referir a qualidade extrema do sistema hospitalar de Milão e do Norte de Itália incapaz de por si só conter a devastação pandémica. Em sentido contrário, a qualidade do sistema público de saúde em Portugal e a valia do conhecimento na área das ciências da vida e das ciências médicas terão tido uma importância vital no desempenho português.


O que a abordagem das capabilities nos ensina é que é sobretudo a combinatória de recursos escolhida que marcou a diferença. Claro que a qualidade dos elementos do cabaz de recursos é relevante. Mas a combinatória é-o mais. Numa primeira aproximação a essa combinatória, falei de uma gestão prudencial das relações entre governo, sistema científico e clínico e comportamento da população. Mas não tenho dúvidas em afirmar que é necessário cavar mais fundo na explicitação da tal combinatória. Recordemos entretanto que, à luz desta abordagem, o poder de “enforcement” ou de vinculação e cumprimento de decisões é um recurso entre outros. O autoritarismo chinês funcionou como recurso crucial da combinatória escolhida pelos chineses. Outros países por convicção não mobilizarão tal recurso.

Estará Portugal a construir uma “dynamic capability” em termos de resposta a situações prementes e devastadoras? É uma boa pergunta. Mas só saberemos quando o surto for dado por extinto (confiando que ele não se vai eternizar) e mais convictamente teremos de esperar por uma qualquer outra premência para perceber se houve aprendizagem organizacional e individual suficientemente madura.

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