(Regresso ao tema das “capabilities” enquanto contributo
para explicar o desempenho diferenciado dos países na sua resposta à pandemia.
Hoje é tempo de um take 2, mobilizando o modo como as ciências da organização e
a gestão estratégica trabalharam o conceito. Por essa via, talvez nos aproximemos mais do que necessitamos para
compreender o tal desempenho diferenciado.
As virtualidades da língua inglesa permitiram-nos compreender a diferença
entre “capability” e “capacity”. Esta última (capacidade de) convoca-nos, aparentemente, para uma dimensão mais estática de utilização
imediata de recursos e faculdades que temos ao nosso alcance. Em contrapartida,
as “capabilities” apontam para processos mais construídos designadamente
de aprendizagem ao nível dos indivíduos, das organizações e, dizem os mais
entusiastas, dos países e sociedades como um todo. Esta progressão do indivíduo
para o todo não é isenta de dificuldades metodológicas, mas vamos ignorá-las
por conveniência de foco.
Se pensarmos bem, esta distinção é relativa. Na verdade, podemos dizer que
a interpretação estática pressupõe sempre uma acumulação de experiência e
aprendizagem. Os recursos de que dispomos em determinado momento não são
situações de tábua rasa. Resultaram de processos de aprendizagem. Ora, é esta
perspetiva mais dinâmica e de processo de construção que as capabilities
pretendem abranger.
Por outro lado, quando mobilizamos “recursos” existentes nunca o fazemos
como se de um somatório se tratasse. Fazemos a diferença porque combinamos
eficazmente esses recursos e essa atividade combinatória define bem a dimensão
das nossas competências, que são sempre aferidas em função de uma situação
concreta que exige resposta. Por isso, a ideia de capacidade de mobilização de
recursos existentes não será tão estática quanto isso. A ideia de combinatória
é o oposto dessa visão estática da nossa capacidade de resposta.
Por esta via, percebemos que temos campo frutífero para avançar na
explicação do desempenho diferenciado dos países na resposta à pandemia. Os países
foram obrigados a responder sem a possibilidade de concretizar grandes
investimentos de conhecimento. Mobilizaram recursos existentes, seja no plano
nacional, seja no mercado global através da importação ou dádivas. A resposta
foi um exemplo de combinação de recursos existentes. Acaso houvesse tempo para
grandes investimentos de preparação de resposta, por exemplo através do
conhecimento, os países mais pujantes teriam obviamente a melhor resposta entre
pares. Isso não aconteceu, veja-se o caso dos EUA e do Reino Unido. O que
significa que houve países mais competentes nas combinatórias de recursos que
utilizaram. Por curiosidade diga-se que alguns países, a Suécia à cabeça, entre
os recursos que mobilizaram estavam os próprios recursos culturais, neste caso
a cultura de distanciamento social que os Suecos invocaram para atribuir à
população uma quota de responsabilidade na gestão da crise. O meu ponto não é
que essa escolha tenha sido eficaz, pelo menos com o referencial de tempo que
temos hoje. O meu ponto é que a paleta de recursos mobilizados é vasta e essa escolha
combinatória representa em si própria uma competência.
Para uma resposta futura, pergunto: que recursos mobilizaram os Portugueses
para a sua resposta à pandemia?
A convocação da abordagem das “capabilities” pelas ciências da organização
e pela gestão estratégica tem várias inspirações e este não o espaço adequado
para o documentar. Gostaria apenas de invocar aqui os contributos de David TEECE
(University of Berkeley). Embora haja trabalhos pioneiros anteriores a esta
data de referência, 1997, é a esta data que se reporta um dos artigos mais
citados do autor, escrito em parceria com Gary PISANO e Amy SHUEN: “Dynamic Capabilities and Strategic Management”
publicado no Strategic Management Journal.
Dois aspetos merecem destaque nesta apropriação do conceito de “capabilities”
pelas ciências da organização e pela gestão estratégica.
O primeiro é a sua herança e inspiração. A abordagem prolonga a perspetiva
de que a resposta competitiva das empresas às exigências da rápida mutação
tecnológica deve ser essencialmente explicada através dos seus recursos
internos e do modo como as empresas os combinam. A inserção no mercado não é
esquecida, até porque é por aí que emergem os desafios aos quais é imperioso
responder e não é indiferente em que organização de mercado a empresa está a
trabalhar (mais concorrencial ou oligopolista, por exemplo). Mas a resposta
projeta a empresa para a mobilização e combinação dos seus recursos e isso é
que fará a diferença, com a tecnologia a comandar a acumulação de conhecimento
interno. Para os mais conhecedores chamamos a esta inspiração ou família de
referenciais teorias baseadas nos recursos (resouce-based theory).
O segundo aspeto é a nuance de adjetivação que TEECE introduz na sua
abordagem, pois é de “dynamic capabilities” que ele fala. Em meu modesto
entender, TEECE quer enfatizar que não basta reconhecer o caráter reconhecidamente
dinâmico, mas implícito, do conceito de “capability”. É necessário
vincar mais a ideia de processo de construção, pois é nesses processos de
combinação (em regra não imediatamente apropriáveis pelos concorrentes) que as
empresas farão a diferença. Daí as “dynamic capabilities”.
A síntese possível do take 2 aponta para as grandes exigências de resposta
rápida que a pandemia provocou. Como é compreensível, não podemos dizer que os
recursos existentes não contaram na resposta que os países concretizaram. Mas o
meu ponto é que, embora tenham contado, não esgotaram a explicação do
desempenho diferenciado. Todos nos recordamos de ouvir uma das vozes mais consideradas
na situação portuguesa, o especialista de doenças respiratórias Filipe Fróis a
referir a qualidade extrema do sistema hospitalar de Milão e do Norte de Itália
incapaz de por si só conter a devastação pandémica. Em sentido contrário, a
qualidade do sistema público de saúde em Portugal e a valia do conhecimento na
área das ciências da vida e das ciências médicas terão tido uma importância
vital no desempenho português.
O que a abordagem das capabilities nos ensina é que é sobretudo a combinatória de recursos escolhida que marcou a diferença. Claro que a qualidade dos elementos do cabaz de recursos é relevante. Mas a combinatória é-o mais. Numa primeira aproximação a essa combinatória, falei de uma gestão prudencial das relações entre governo, sistema científico e clínico e comportamento da população. Mas não tenho dúvidas em afirmar que é necessário cavar mais fundo na explicitação da tal combinatória. Recordemos entretanto que, à luz desta abordagem, o poder de “enforcement” ou de vinculação e cumprimento de decisões é um recurso entre outros. O autoritarismo chinês funcionou como recurso crucial da combinatória escolhida pelos chineses. Outros países por convicção não mobilizarão tal recurso.
Estará Portugal a construir uma “dynamic capability” em termos de
resposta a situações prementes e devastadoras? É uma boa pergunta. Mas só
saberemos quando o surto for dado por extinto (confiando que ele não se vai
eternizar) e mais convictamente teremos de esperar por uma qualquer outra premência
para perceber se houve aprendizagem organizacional e individual suficientemente
madura.
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