(Uma recaída de Rui Rio pelos mundos do populismo, a
questão mal contada das remunerações dos administradores, a dança trapalhona
das auditorias e do que visam e a propensão para avaliação das decisões tomadas
no passado à luz da informação de hoje e um contrato de venda que é do
conhecimento apenas de alguns, fizeram regressar para mal dos nossos pecados da
arte de debater mal informado o tema do Novo Banco como se não houvesse coisa
mais importante e como se o fundamental não fosse como nos vamos aguentar com
esta recessão das sérias. A título pessoal tenho
ainda a obrigação de digerir a vasta e relevante informação que amavelmente o
Governador do Banco de Portugal me sinalizou. Se não fora por outro motivo,
para aqui registar a sóbria e informada entrevista que concedeu ao Expresso
este fim de semana.
Começo por uma evidência que tem sido, não sei se malevolamente ou apenas
por memória curta, praticamente ignorada nesta revisitação desgovernada do tema
do BES-Novo Banco. Não foi um castelo qualquer que se declarou em ruína entre 3
e 4 de agosto de 2014. Os prejuízos do 1º semestre de 2014 então revelados pelo
BES davam conta de danos irreparáveis nas fundações e saíam à luz do dia
completamente em atropelo de quanto era previsão anterior, sugerindo que
grossas irregularidades tinham sido praticadas. O BCE colocou então o BES fora
do Sistema Monetário Europeu o que significava então a dura realidade de
reembolso imediato dos 10.000 milhões de euros de créditos (tão amigo que foi o
BCE da geração do desastre). Não era um pastiche de castelinho de novo rico que
se estatelava. Era um dos principais bancos do sistema português. Imaginar, por
isso, que o país poderia ficar imune aos efeitos de tal descalabro é pura
ingenuidade ou vontade de desculpabilizar os autores da proeza.
Uma outra narrativa enublada sobre o BES (verdade que alimentada por gente
que nunca se demarcou suficientemente da áurea dos Espírito Santo (caso típico
de Miguel Sousa Tavares) tem efabulado sobre a oportunidade perdida de
envolvimento de investidores privados. Não há evidência oficial de que o pedido
de capitalização solicitado pelo Banco de Portugal em 29.07.14 tenha encontrado
eco da parte de investidores privados. Em carta de 31.07.2014 a Administração
do BES confirmou essa impossibilidade.
Na audição de maio de 2019, o Governador do Banco de Portugal confirmou que,
no âmbito da intervenção ao alcance do regulador, as duas únicas hipóteses que
se colocavam face à decisão do BCE de excluir o BES do Sistema Monetário
Europeu era a liquidação ou a resolução nos termos em que foi equacionada.
Poderão os mais céticos retorquir que essa era a apreciação do regulador. Mas a
verdade é que há uma outra decisão, essa no âmbito judicial, que tem sido
praticamente ignorada nesta revisitação desgovernada do NB. Refiro-me à
deliberação unânime do TAC - Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa de 21.03.2019,
na qual é validada a tese de liquidação ou resolução como únicas alternativas válidas
em 2014 para superar a saída do BES do SME decidida pelo BCE.
E aqui entramos num mundo um pouco demasiado kafkiano para meu gosto
relativo à reduzidíssima margem de manobra de uma possível nacionalização do banco.
Está fora de questão a possibilidade dessa opção ser considerada pela ação do
Banco de Portugal, já que essa decisão não tem cobertura nas suas competências.
A ser equacionada, tratar-se-ia de uma decisão política e não do regulador. Em
período de saída do processo de ajustamento financeiro, posso reconhecer que a
decisão de nacionalização traria apenas pelo seu impacto nas contas públicas um
forte ónus. No entanto e aqui entra o ambiente kafkiano desfavorável às
pretensões públicas. O quadro normativo europeu impõe fortes limites à
capitalização pública de bancos em resolução pelo mínimo necessário, por força
da questão sempre complexa das ajudas de estado e dos constrangimentos comunitários
à sua mobilização. Não posso deixar de confrontar essas reservas com a situação
de hoje quando abro os olhos de espanto com os valores anunciados para a
injeção de capital público em empresas alemãs como a TUI agência de viagens ou
a Lufthansa companhia aérea ou quando ouço falar das necessidades de capital
público da Renault. O contexto em confronto tem obviamente limites de comparabilidade,
mas soa a camisa de forças quando se percebe que o quadro normativo existente
obriga a que, em caso de necessidade de capitalização pública do banco
intervencionado, as alternativas não eram a de abrir exceção para essa
capitalização mas antes a liquidação ou a resolução.
A chamada capitalização contingente do NB e as contribuições adicionais do
Fundo de Resolução até a um teto de 3.890 milhões de euros só podem ser
compreendidas à luz de um quadro normativo que coloca a capitalização pública
nos mínimos dos mínimos possíveis. Mas há um tema pouco presente no mal-informado
debate a que se tem assistido. A regulamentação de obrigatoriedade de capitais
próprios para os bancos tornou-se mais exigente e pelos números
disponibilizados pelo Banco de Portugal a subida de um rácio de 8% para 14%
nessa matéria é por si só responsável por uma parte importante da capitalização
adicional solicitada ao Fundo de Resolução. Nessa documentação encontra-se a
revelação de que as imparidades entretanto observadas na carteira de ativos do
NB não se afastam significativamente da observada noutros bancos nacionais que
tiveram também de enfrentar essa penalização. Não encontrei evidência de
contestação a esta argumentação e imagino que a existirem disparidades sérias
algo teria transparecido pelo menos da parte da Fundo de Resolução, que conhece
bem a matéria registada noutros bancos.
Aquilo a que chamo de ambiente kafkiano observa-se também no que respeita às
condições de enquadramento da venda pressupostamente competitiva ao Lone Star.
A legislação comunitária impunha dois anos com alguma prorrogação para essa
venda se concretizar, não deixando de ser estranho que essas condições fossem
estabelecidas sem ter em conta o contexto de mercado em que tal venda teria de
ser concretizada. Com esse constrangimento de tempo, a proteção face a certos
ativos que não pertenciam ao coração da atividade bancária exigida pelo
potencial comprador coloca obviamente o vendedor em situação de desvantagem na
negociação. E assim aconteceu apesar do comprador ter oferecido a injeção de
1.000 milhões de euros para capitalização do banco a comprar.
E o universo kafkiano completa-se com a conclusão de que face a toda esta
série de constrangimentos a venda à Lone Star terá sido a melhor possível. Na
argumentação oficial (não contrariada por qualquer posição do Fundo de
Resolução), a capitalização contingente do NB a cargo deste último é concretizada
apenas quando as perdas de venda de ativos se verificam e na justa medida em
que as exigências de rácios de capital são prejudicadas. Segundo valores oficiais
que encontrei, das perdas de 2.662 milhões de euros observadas entre 2016 e 2018
o Fundo de Resolução terá entrado com 73% desse valor.
Finalmente, falei de experimentalismo na opção pela Resolução em 2014.
Talvez a adjetivação de suicida seja exagerada. Mas a verdade é que os casos
registados de resolução após a do BES incidiram sobre bancos bem mais pequenos
seja em termos absolutos, seja do ponto de vista do seu peso nas respetivas
economias. E também é verdade que após 2014 muitos outros complementos
legislativos foram introduzidos, mostrando a posteriori que a decisão de 2014
foi tomada atrevidamente sem rede de suporte.
Com tudo isto, reconheço que ter atravessado este caminho difícil sem interrupção
do financiamento à economia e sem evasão de depósitos contam bastante a favor
da sequência de decisões assumidas. Os constrangimentos à capitalização pública
continuam a encurtar as margens de manobra. A revisitação do debate como tem
emergido nas últimas duas semanas é demasiado pobre para lhe dedicar mais
atenção.
E por último não posso deixar de voltar à vaca fria: mas em que raio de
operações estaria Rui Rio a pensar para ceder ao mais rasteiro populismo? Terá “inside
information”?
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