domingo, 24 de maio de 2020

E O NOVO BANCO QUE NÃO NOS LARGA!



(Uma recaída de Rui Rio pelos mundos do populismo, a questão mal contada das remunerações dos administradores, a dança trapalhona das auditorias e do que visam e a propensão para avaliação das decisões tomadas no passado à luz da informação de hoje e um contrato de venda que é do conhecimento apenas de alguns, fizeram regressar para mal dos nossos pecados da arte de debater mal informado o tema do Novo Banco como se não houvesse coisa mais importante e como se o fundamental não fosse como nos vamos aguentar com esta recessão das sérias. A título pessoal tenho ainda a obrigação de digerir a vasta e relevante informação que amavelmente o Governador do Banco de Portugal me sinalizou. Se não fora por outro motivo, para aqui registar a sóbria e informada entrevista que concedeu ao Expresso este fim de semana.

Começo por uma evidência que tem sido, não sei se malevolamente ou apenas por memória curta, praticamente ignorada nesta revisitação desgovernada do tema do BES-Novo Banco. Não foi um castelo qualquer que se declarou em ruína entre 3 e 4 de agosto de 2014. Os prejuízos do 1º semestre de 2014 então revelados pelo BES davam conta de danos irreparáveis nas fundações e saíam à luz do dia completamente em atropelo de quanto era previsão anterior, sugerindo que grossas irregularidades tinham sido praticadas. O BCE colocou então o BES fora do Sistema Monetário Europeu o que significava então a dura realidade de reembolso imediato dos 10.000 milhões de euros de créditos (tão amigo que foi o BCE da geração do desastre). Não era um pastiche de castelinho de novo rico que se estatelava. Era um dos principais bancos do sistema português. Imaginar, por isso, que o país poderia ficar imune aos efeitos de tal descalabro é pura ingenuidade ou vontade de desculpabilizar os autores da proeza.

Uma outra narrativa enublada sobre o BES (verdade que alimentada por gente que nunca se demarcou suficientemente da áurea dos Espírito Santo (caso típico de Miguel Sousa Tavares) tem efabulado sobre a oportunidade perdida de envolvimento de investidores privados. Não há evidência oficial de que o pedido de capitalização solicitado pelo Banco de Portugal em 29.07.14 tenha encontrado eco da parte de investidores privados. Em carta de 31.07.2014 a Administração do BES confirmou essa impossibilidade.

Na audição de maio de 2019, o Governador do Banco de Portugal confirmou que, no âmbito da intervenção ao alcance do regulador, as duas únicas hipóteses que se colocavam face à decisão do BCE de excluir o BES do Sistema Monetário Europeu era a liquidação ou a resolução nos termos em que foi equacionada. Poderão os mais céticos retorquir que essa era a apreciação do regulador. Mas a verdade é que há uma outra decisão, essa no âmbito judicial, que tem sido praticamente ignorada nesta revisitação desgovernada do NB. Refiro-me à deliberação unânime do TAC - Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa de 21.03.2019, na qual é validada a tese de liquidação ou resolução como únicas alternativas válidas em 2014 para superar a saída do BES do SME decidida pelo BCE.

E aqui entramos num mundo um pouco demasiado kafkiano para meu gosto relativo à reduzidíssima margem de manobra de uma possível nacionalização do banco. Está fora de questão a possibilidade dessa opção ser considerada pela ação do Banco de Portugal, já que essa decisão não tem cobertura nas suas competências. A ser equacionada, tratar-se-ia de uma decisão política e não do regulador. Em período de saída do processo de ajustamento financeiro, posso reconhecer que a decisão de nacionalização traria apenas pelo seu impacto nas contas públicas um forte ónus. No entanto e aqui entra o ambiente kafkiano desfavorável às pretensões públicas. O quadro normativo europeu impõe fortes limites à capitalização pública de bancos em resolução pelo mínimo necessário, por força da questão sempre complexa das ajudas de estado e dos constrangimentos comunitários à sua mobilização. Não posso deixar de confrontar essas reservas com a situação de hoje quando abro os olhos de espanto com os valores anunciados para a injeção de capital público em empresas alemãs como a TUI agência de viagens ou a Lufthansa companhia aérea ou quando ouço falar das necessidades de capital público da Renault. O contexto em confronto tem obviamente limites de comparabilidade, mas soa a camisa de forças quando se percebe que o quadro normativo existente obriga a que, em caso de necessidade de capitalização pública do banco intervencionado, as alternativas não eram a de abrir exceção para essa capitalização mas antes a liquidação ou a resolução.

A chamada capitalização contingente do NB e as contribuições adicionais do Fundo de Resolução até a um teto de 3.890 milhões de euros só podem ser compreendidas à luz de um quadro normativo que coloca a capitalização pública nos mínimos dos mínimos possíveis. Mas há um tema pouco presente no mal-informado debate a que se tem assistido. A regulamentação de obrigatoriedade de capitais próprios para os bancos tornou-se mais exigente e pelos números disponibilizados pelo Banco de Portugal a subida de um rácio de 8% para 14% nessa matéria é por si só responsável por uma parte importante da capitalização adicional solicitada ao Fundo de Resolução. Nessa documentação encontra-se a revelação de que as imparidades entretanto observadas na carteira de ativos do NB não se afastam significativamente da observada noutros bancos nacionais que tiveram também de enfrentar essa penalização. Não encontrei evidência de contestação a esta argumentação e imagino que a existirem disparidades sérias algo teria transparecido pelo menos da parte da Fundo de Resolução, que conhece bem a matéria registada noutros bancos.

Aquilo a que chamo de ambiente kafkiano observa-se também no que respeita às condições de enquadramento da venda pressupostamente competitiva ao Lone Star. A legislação comunitária impunha dois anos com alguma prorrogação para essa venda se concretizar, não deixando de ser estranho que essas condições fossem estabelecidas sem ter em conta o contexto de mercado em que tal venda teria de ser concretizada. Com esse constrangimento de tempo, a proteção face a certos ativos que não pertenciam ao coração da atividade bancária exigida pelo potencial comprador coloca obviamente o vendedor em situação de desvantagem na negociação. E assim aconteceu apesar do comprador ter oferecido a injeção de 1.000 milhões de euros para capitalização do banco a comprar.

E o universo kafkiano completa-se com a conclusão de que face a toda esta série de constrangimentos a venda à Lone Star terá sido a melhor possível. Na argumentação oficial (não contrariada por qualquer posição do Fundo de Resolução), a capitalização contingente do NB a cargo deste último é concretizada apenas quando as perdas de venda de ativos se verificam e na justa medida em que as exigências de rácios de capital são prejudicadas. Segundo valores oficiais que encontrei, das perdas de 2.662 milhões de euros observadas entre 2016 e 2018 o Fundo de Resolução terá entrado com 73% desse valor.

Finalmente, falei de experimentalismo na opção pela Resolução em 2014. Talvez a adjetivação de suicida seja exagerada. Mas a verdade é que os casos registados de resolução após a do BES incidiram sobre bancos bem mais pequenos seja em termos absolutos, seja do ponto de vista do seu peso nas respetivas economias. E também é verdade que após 2014 muitos outros complementos legislativos foram introduzidos, mostrando a posteriori que a decisão de 2014 foi tomada atrevidamente sem rede de suporte.

Com tudo isto, reconheço que ter atravessado este caminho difícil sem interrupção do financiamento à economia e sem evasão de depósitos contam bastante a favor da sequência de decisões assumidas. Os constrangimentos à capitalização pública continuam a encurtar as margens de manobra. A revisitação do debate como tem emergido nas últimas duas semanas é demasiado pobre para lhe dedicar mais atenção.

E por último não posso deixar de voltar à vaca fria: mas em que raio de operações estaria Rui Rio a pensar para ceder ao mais rasteiro populismo? Terá “inside information”?

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