(Com a exceção da incontornável jornalista Teresa de Sousa, o panorama de compreensão histórica dos dilemas e fragilidades da União Europeia é lamentavelmente pobre e oco de reflexão fundamentada. Pela parte que me toca e no sentido de preencher lacunas de informação tenho andado às voltas com o Pós-Guerra de Tony Judt. Os ares de Seixas convidam à leitura e não me tenho arrependido de tal decisão.)
Para comemorar com modéstia o dia da Europa (o dia de ontem) dediquei algum tempo da procrastinação de Seixas a avançar na releitura do Pós-Guerra de Tony Judt. Em grande medida estimulado pelo consistente artigo de Teresa de Sousa no Público, que é cada vez mais a grande referência da comunicação social portuguesa sobre temas europeus e sobretudo sobre a compreensão dos desafios que o projeto europeu enfrenta, procurei avançar mais robustamente sobre a cronologia dos factos e das suas interpretações após o fim da Segunda Guerra Mundial. Tenho de confessar que para isso também contribuiu a minha rendição aos encantos da NETFLIX e sobretudo aos episódios da série THE CROWN que absorvemos cá em casa com deleite e satisfação. Eu que não tenho qualquer simpatia pelas questões da realeza, vibrei com a série, magnífica aliás, e sobretudo com os tempos da segunda metade dos anos 40 e anos 50.
A leitura do Pós-Guerra de Judt é surpreendente pois a cada parágrafo dou comigo a projetar-me nos problemas de hoje e a compreender que o lastro histórico de muitas das interrogações de hoje já emergiam cristalinas na segunda metade dos anos 40 e no dealbar do projeto europeu, designadamente através de uma coisa que ficou bastante aquém do que Jean Monnet tinha idealizado para a mesma, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA). Afinal de contas, a razão pragmática para o nascimento da CECA não tinha outra razão que não fosse o de resolver a eterna desconfiança entre a França e a Alemanha no pós Segunda Guerra.
Nestas coisas, uma longa citação explica melhor a minha contínua transposição para os tempos de hoje. O contexto é a criação da CECA.
"(...) Vale a pena fazer uma pausa para chamar a atenção para um aspeto que não deixou de ser notado na altura. Todos os seis ministros dos Negócios Estrangeiros que assinaram o tratado de 1951 eram membros dos seus respetivos partidos democratas-cristãos. Os três estadistas dominantes nos principais Estados-membros, Alcide De Gasperi, Konrad Adenauer e Robert Scumann, pertenciam todos à periferia dos seus países: De Gasperi era de Trentino, no Nordeste de Itália, Adenauer da Renânia, Schumann da Lorena. Quando De Gasperi nasceu e até durante parte da sua idade adulta, o Trentino fazia parte do Império Austro-Húngaro e ele próprio estudou em Viena. Schumann nasceu na Lorena, que foi integrada no império germânico. Quando era jovem, tal como Adenauer, entrou para associações católicas que, na verdade, eram as mesmas a que o renano pertencera dez anos atrás. Quando se encontraram, os três homens conversaram em alemão, a sua língua comum.
Para os três, tal como para os seus correligionários democratas-cristãos do Luxemburgo bilingue, da Bélgica bilingue e bicultural, e da Holanda, um projeto de cooperação europeu tinha sentido dos pontos de vistas cultural e económico. Era razoável que pudessem ver nele uma contribuição para a superação da crise civilizacional que despedaçara a Europa cosmopolita da sua juventude. Fazendo um apelo a partir da orla dos seus próprios países, onde as identidades há muito eram diversas e as fronteiras fungíveis. Schumann e os seus colegas não estavam particularmente inquietos com uma certa perspetiva de fusão das soberanias nacionais. Com a guerra e a ocupação todos os seis membros da nova CECA haviam visto, muito recentemente, a sua soberania ignorada e espezinhada. Tinham já pouca soberania a perder. Para além disso, a sua preocupação comum, de índole democrata-cristã, com a coesão social e a responsabilidade coletiva, predispôs todos a sentirem-se à vontade com a ideia de uma “Alta Autoridade”, transnacional, dotada de poderes executivos em prol do bem comum”.
A história é por vezes cristalina como um rio a nascer nos Alpes.
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