(Para além dos impactos óbvios nas ciências mais diretamente ligadas à compreensão da pandemia e à luta por uma vacina, dos quais se espera um comportamento mais cooperativo do que o observado a nível político, têm-se registado outros efeitos em áreas científicas mais laterais ao coração da compreensão do novo vírus. Por interação com o amigo Guilherme Costa eis que regressei a um tema que me é caro o das “capabilities”, que atravessou a minha formação nos domínios do desenvolvimento, das ciências organizacionais e da economia da inovação e da tecnologia.
O modo como os diferentes países reagiram à pandemia e os resultados muito diferenciados que alcançaram, sobretudo em termos de sobre-incidência da letalidade e de exaustão dos sistemas de saúde atraiu, como seria de esperar, uma vaga multifacetada de propostas de explicação. A via mais divulgada tem consistido no elenco o mais exaustivo possível de variáveis que possam ter influenciado a resposta, ao qual sucede depois um “check-out” do país face a esses fatores influenciadores da resposta. Como se imagina há variáveis para todos, em função dos domínios científicos caros a quem empreende tal tarefa. Situação geográfica (tipo e diversidade de fronteiras), densidade e organização do território, exposição às cadeias de valor globais, dotação de recursos e desempenho do sistema público de saúde, grau de precocidade ou de atraso na decisão dos confinamentos e lockdowns de toda a espécie, qualidade da coordenação e governança política, grau de desigualdade existente, cultura e modelos de interação social, conceções prevalecentes entre os virologistas e especialistas de abordagem a pandemias, capacidade de realização de testes à população, nível de desenvolvimento do sistema científico, enfim um rol imenso, aqui imperfeitamente representado.
Certamente que este modo de abordagem, apoiado por maior ou menor sofisticação de análise de dados, nos trará mais conhecimento que pode completar os desenvolvimentos do núcleo central e duro da abordagem científica ao vírus. E imagino até que a comparação dessas abordagens com análises de pandemias passadas nos irá enriquecer. Veja-se, por exemplo, o recente artigo do sempre influente Robert J. Barro (Harvard University): “NON-PHARMACEUTICAL INTERVENTIONS AND MORTALITY IN U.S. CITIES DURING THE GREAT INFLUENZA PANDEMIC, 1918-1919”, publicado em abril deste ano no NBER-EUA (link aqui).
Impulsionado pelo interesse do amigo Guilherme Costa nos desafios dos sistemas e das organizações complexos, e a resposta à pandemia entra decisivamente nessa categoria, veio à baila de novo a velha questão das capabilities.
A razão é simples. Mais do que um somatório de condições favoráveis a um bom desempenho pandémico dos países, o resultado final decorre sobretudo do modo como os países combinam esses recursos, maximizando condições favoráveis existentes e minimizando ou mitigando posicionamentos mais desfavoráveis em termos de vulnerabilidade à pandemia. É de “capabilities” que se trata e não apenas de dotação de recursos, embora a tradução para português seja um quebra cabeças, pois temos aquela sensação de que “capacidades” diz menos do que as “capabilities” sugerem.
A maneira como as “capabilities” se atravessaram na minha formação é em si própria matéria para imensos posts. A multiplicidade dos encontros proporcionados é em si própria um excelente indicador do poder do conceito pela abrangência de utilizações que pode proporcionar.
O meu primeiro encontro imediato aconteceu quando queimava neurónios a conceptualizar o desenvolvimento, quando nos parecia que essa era a batalha certa, ao serviço de uma economia que não desdenhasse integrar os sistemas de valores. Dois nomes iluminaram esse encontro, Amartya Sen e Martha Nussbaum.
Esta passagem do THE IDEA OF JUSTICE (edição portuguesa magnífica na Almedina) de Sen tem a virtude de precisar bem de que modo cheguei ao universo das “capabilities”:
“A partir do momento em que a ideia de capability está ligada à liberdade substantiva, ela concede um papel central à capacidade efetiva da pessoa fazer diferentes coisas que ela valoriza. A abordagem das capabilities foca-se nas vidas humanas e não apenas nos recursos que as pessoas possuem, sob a forma de ter – ou usar – objetos de conveniência que uma pessoa pode deter. O rendimento e a riqueza são frequentemente encarados como sendo o critério principal do êxito humano. Propondo uma mudança fundamental no foco da atenção nos meios de vida para as oportunidades efetivas que as pessoas têm, a abordagem das capabilities aspira a uma mudança radical nas abordagens dos padrões avaliativos generalizadamente utilizados nos estudos económicos e sociais.”
Será curioso explicar como é que a partir deste primeiro encontro imediato, outros aconteceram já no domínio das ciências da organização e na economia da inovação e da tecnologia, sempre procurando explicar melhor o diferenciado desempenho de organizações e países.
Ou seja, Sen mobiliza o conceito de capability para fundamentar mudanças radicais na interpretação da qualidade de vida. “ A capability de uma pessoa reflete as combinações alternativas de funções que uma pessoa pode concretizar, e a partir das quais ele ou ela pode escolher um dado conjunto. A abordagem baseia-se numa perspetiva da vida entendida como uma combinação de vários “fazeres e seres”, com a qualidade de vida a ser avaliada em termos da capacidade de concretizar funções que valoramos” (in “Capability and Well-being”, artigo de Amartya Sen integrado na obra coletiva editada por Martha Nussbaum e o próprio Sen, sob o título The Quality of Life, Oxford University Press, 1993).
Mas tudo isto num contexto de liberdade substantiva.
Há aqui matéria para muitos takes.
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