quarta-feira, 6 de maio de 2020

SÓ NOS FALTAVA ESTA!



(A notícia que determinou este post retoma uma guerra anunciada entre autoridades comunitárias, neste caso o Tribunal de Justiça da União Europeia e o Tribunal Constitucional Federal Alemão. O conflito jurídico interpretativo entre as duas entidades não diz respeito ao “whatever it takes” que Madame Lagarde, depois de andar inicialmente aos papéis, assumiu recentemente para conduzir a abordagem do BCE à brutal recessão económica que se anuncia como efeito da crise pandémica. Mas não deixa por isso de ameaçar a estabilidade que as autoridades comunitárias necessitariam para sair airosamente deste grande desafio.

A questão não é nova. O Tribunal Constitucional Alemão, sempre cioso de marcar a sua posição face a eventuais conflitos entre legislação comunitária e a lei constitucional alemã, já tinha em seu tempo questionado a legalidade do chamado Public Sector Purchase Programme (PSPP) um programa de compra de títulos de dívida pública e de outros títulos. O PSPP está integrado num programa mais largo, que vem dos tempos de Mario Draghi, o chamado Expanded Asset Purchase Programme (EAPP), que enquadra a aquisição de ativos nos mercados financeiros. O Tribunal Constitucional Alemão levantou dúvidas quanto ao mecanismo de financiamento de política monetária que esse programa, na sua interpretação, representa. De certo modo, a lei alemã plasmou a fobia inflacionária alemã marcada pelo pós Guerra. Ou seja, os factos datam de 2015. Estamos em 2020 e pelos factos de ontem cinco anos não foram bastantes para o conflito se resolver.

Em 11 de dezembro de 2018, o Tribunal de Justiça da União Europeia julgou o “caso”, decidindo que o PSPP nem excede o mandato do BCE nem viola a regra da proibição do financiamento monetário. Julgou, está julgado. Admitiria o vulgar cidadão. Mas não é assim. Na decisão de ontem, o Tribunal de Karlsrhue questiona a decisão do Tribunal Europeu, considerando a decisão de 2018 um “Ultra Vires Act”. Lá foi o vosso amigo tentar compreender essa classificação e lá entendi que os Atos Ultra Vires são “atos que estão para além da autoridade legal de uma dada organização”.

Não é coisa pequena, ainda por cima no meio de uma pandemia e de uma Grande Recessão para controlar. Nestas coisas gosto de tentar compreender a lógica de uma decisão desta envergadura pelas consequências que pode trazer ou, na pior das hipóteses, pelo poder de clarificação e de destruição de pias soluções na União Europeia.

Retive especialmente os seguintes argumentos para vos mostrar que estamos perante caça grossa (link aqui):

“(…) Ainda que os Estados Membros se devam coibir completamente de realizar a revisão de qualquer tipo de atos ultra vires, eles concede aos orgãos da União Europeia autoridade exclusiva sobre os Tratados mesmo em casos em que a União Europeia adote uma interpretação legal que justifica uma emenda aos Tratados ou um alargamento das suas competências. Embora os casos em que as instituições da UE excedem as suas competências sejam excecionalmente possíveis, espera-se que essas instâncias permaneçam raras dadas as salvaguardas institucionais e procedimentais enraizados nas leis da EU. Contudo, quando acontecem, a perspetiva constitucional pode não adequar-se perfeitamente à perspetiva legal da UE, dado que Segundo o Tratado de Lisboa os Estados Membros continuam a ser os “Masters dos Tratados” e a EU não evoluiu para um estado federal”.

(…) Além do mais, ignorando completamente todos os efeitos de política económica decorrentes do programa, a decisão de 11 de dezembro de 2018 entra em contradição com a abordagem metodológica assumida pelo Tribunal Europeu de Justiça em praticamente todas as restantes áreas do direito comunitário. Falha na adoção da função do princípio da conferência como um determinante-chave da divisão de competências e não atende às consequências metodológicas que daí adviriam se tal princípio fosse aplicado.”

(…) não pode por agora e em definitivo determinar se o Governo Federal e o Banco central alemão violaram ou não a sua responsabilidade relativa à integração Europeia (Integrationsverantwortung), abdicando de recomendar a suspensão do PSPP. Essa avaliação depende da avaliação da proporcionalidade realizada pelo Conselho de Governadores do BCE, que deve ser baseado em razões compreensíveis. Na falta de tal avaliação, não é possível chegar a uma conclusão decisiva se o SPPP é em substância compatível com o artigo 127 (1) do Tratado de Funcionamento da União Europeia”.

Ainda que o texto da decisão do Tribunal Constitucional Alemão se apresse a explicar que “a decisão hoje publicada não respeita a quaisquer medidas tomadas pela EU ou pelo BCE no contexto da presente crise do coronavírus”, alguns jornais europeus chamavam-lhe um torpedo sobre a União. É caça grossa e traz consequências neste momento muito particular. E não é uma querela qualquer. Está antes no âmago das inconsistências, fragilidades ou equilíbrios impensáveis de que o quadro normativo europeu é feito.

Sem comentários:

Enviar um comentário