(A notícia que determinou este post retoma uma guerra
anunciada entre autoridades comunitárias, neste caso o Tribunal de Justiça da
União Europeia e o Tribunal Constitucional Federal Alemão. O conflito jurídico interpretativo entre as duas entidades não diz respeito
ao “whatever it takes” que Madame Lagarde, depois de andar inicialmente aos
papéis, assumiu recentemente para conduzir a abordagem do BCE à brutal recessão
económica que se anuncia como efeito da crise pandémica. Mas não deixa por isso
de ameaçar a estabilidade que as autoridades comunitárias necessitariam para
sair airosamente deste grande desafio.
A questão não é nova.
O Tribunal Constitucional Alemão, sempre cioso de marcar a sua posição face a
eventuais conflitos entre legislação comunitária e a lei constitucional alemã,
já tinha em seu tempo questionado a legalidade do chamado Public Sector
Purchase Programme (PSPP) um programa de compra de títulos de dívida pública
e de outros títulos. O PSPP está integrado num programa mais largo, que vem dos
tempos de Mario Draghi, o chamado Expanded Asset Purchase Programme (EAPP),
que enquadra a aquisição de ativos nos mercados financeiros. O Tribunal Constitucional
Alemão levantou dúvidas quanto ao mecanismo de financiamento de política
monetária que esse programa, na sua interpretação, representa. De certo modo, a
lei alemã plasmou a fobia inflacionária alemã marcada pelo pós Guerra. Ou seja,
os factos datam de 2015. Estamos em 2020 e pelos factos de ontem cinco anos não
foram bastantes para o conflito se resolver.
Em 11 de dezembro de
2018, o Tribunal de Justiça da União Europeia julgou o “caso”, decidindo que o
PSPP nem excede o mandato do BCE nem viola a regra da proibição do financiamento
monetário. Julgou, está julgado. Admitiria o vulgar cidadão. Mas não é assim.
Na decisão de ontem, o Tribunal de Karlsrhue questiona a decisão do Tribunal
Europeu, considerando a decisão de 2018 um “Ultra
Vires Act”. Lá foi o vosso amigo tentar compreender essa
classificação e lá entendi que os Atos Ultra Vires são “atos que estão para
além da autoridade legal de uma dada organização”.
Não é coisa pequena,
ainda por cima no meio de uma pandemia e de uma Grande Recessão para controlar.
Nestas coisas gosto de tentar compreender a lógica de uma decisão desta envergadura
pelas consequências que pode trazer ou, na pior das hipóteses, pelo poder de
clarificação e de destruição de pias soluções na União Europeia.
Retive especialmente
os seguintes argumentos para vos mostrar que estamos perante caça grossa (link aqui):
“(…) Ainda que os Estados Membros se devam coibir
completamente de realizar a revisão de qualquer tipo de atos ultra vires, eles concede
aos orgãos da União Europeia autoridade exclusiva sobre os Tratados mesmo em
casos em que a União Europeia adote uma interpretação legal que justifica uma
emenda aos Tratados ou um alargamento das suas competências. Embora os casos em
que as instituições da UE excedem as suas competências sejam excecionalmente
possíveis, espera-se que essas instâncias permaneçam raras dadas as
salvaguardas institucionais e procedimentais enraizados nas leis da EU. Contudo,
quando acontecem, a perspetiva constitucional pode não adequar-se perfeitamente
à perspetiva legal da UE, dado que Segundo o Tratado de Lisboa os Estados Membros
continuam a ser os “Masters dos Tratados” e a EU não evoluiu para um estado
federal”.
(…) Além do mais, ignorando completamente
todos os efeitos de política económica decorrentes do programa, a decisão de 11
de dezembro de 2018 entra em contradição com a abordagem metodológica assumida
pelo Tribunal Europeu de Justiça em praticamente todas as restantes áreas do
direito comunitário. Falha na adoção da função do princípio da conferência como
um determinante-chave da divisão de competências e não atende às consequências
metodológicas que daí adviriam se tal princípio fosse aplicado.”
(…) não pode por agora e em definitivo determinar
se o Governo Federal e o Banco central alemão violaram ou não a sua
responsabilidade relativa à integração Europeia (Integrationsverantwortung), abdicando
de recomendar a suspensão do PSPP. Essa avaliação depende da avaliação da
proporcionalidade realizada pelo Conselho de Governadores do BCE, que deve ser
baseado em razões compreensíveis. Na falta de tal avaliação, não é possível
chegar a uma conclusão decisiva se o SPPP é em substância compatível com o
artigo 127 (1) do Tratado de Funcionamento da União Europeia”.
Ainda
que o texto da decisão do Tribunal Constitucional Alemão se apresse a explicar
que “a decisão hoje publicada não respeita a
quaisquer medidas tomadas pela EU ou pelo BCE no contexto da presente crise do
coronavírus”, alguns jornais europeus chamavam-lhe um torpedo
sobre a União. É caça grossa e traz consequências neste momento muito
particular. E não é uma querela qualquer. Está antes no âmago das inconsistências,
fragilidades ou equilíbrios impensáveis de que o quadro normativo europeu é feito.
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