domingo, 31 de maio de 2020

PERDER LOS PAPELES

(El País)

(Na minha errática aproximação ao castelhano sou confrontado por vezes com expressões que fazem as minhas delícias. Foi o caso esta semana de uma expressão que surgiu nos jornais espanhóis a propósito do confronto entre dois PP (Partido Popular) que é cada vez mais aberto à medida que a sociedade espanhola vai sendo minada pelo ruído político e da “calle”.  Curiosamente, foi Nuñez Feijoo, líder galego, e cada vez mais porta-voz de um PP que não se revê no estilo de oposição de Casado e sus muchachas, que esteve na origem da súbita expressão mediática daquela expressão)

A expressão “perder los papeles” talvez seja mais delicada do que a nossa “andar aos papéis”, mas o significado é próximo. A história política desta semana conta-se em poucas palavras. A porta-voz do PP, Caetana Álvarez de Toledo, amiga dos sete costados de Pablo Casado e sua apoiante da primeira hora, tem um estilo deveras azougado e de língua afiada preparada para toda a batalha verbal em que a política espanhola está totalmente mergulhada. Como sempre acontece em personagens desta envergadura, que se esgotam no esgrima do chiste e do  combate viperino e de faca na liga, em ambientes estimulantes para esse estilo de fazer política, como o que define hoje a sociedade espanhola, só por sorte divina é que após vinte ou mais chistes do mais viperino possível se compreende uma racional orientador de toda aquela bravata. O estilo de oposição do PP é hoje assim. Erradamente persuadido de que o eleitorado interessado em despachar a atual coligação PSOE – Unidas Podemos consegue nesta onda viperina encontrar uma alternativa que o sossegue, o PP tem sido confrontado com as nuvens negras de uma possível irrelevância.

Esta semana, a porta-voz do PP resolveu mergulhar fundo nas questões do independentismo basco (que segundo a última sondagem conhecida vale apenas 12% do eleitorado basco) e classificar de “terrorista” o pai de Pablo Iglésias (líder do Unidas Podemos). Javier Iglésias foi militante das FRAP (Frente Revolucionária Antifascista e Patriótica) durante o franquismo e estava na prisão quando aquele grupo político foi atribuído um conjunto de atos terroristas. Nuñez Feijoo, líder galego e cada vez protagonista de um outro PP e de uma outra estratégia de oposição, veio a terreiro afirmar que Caetana (a Marquesa, segundo Pablo Iglésias) tinha perdido “los papeles” com aquele tipo de intervenção.

Mas a crónica de hoje não é linguística ou de semântica política. O que eu simplesmente acho é que a política espanhola perdeu literalmente “los papeles” e está mergulhada numa chinfrineira de ruídos, dos quais a língua viperina de Caetana Álvarez de Toledo é uma principiante bondosa quando comparada com a agressividade da “calle y en coche” que a extrema-direita do VOX protagonizou nos últimos dias em Madrid.

A ensaísta Remedios Zafra assinava ontem no El País (link aqui) um excelente artigo sobre a multiplicação desgovernada do ruído como forma de ação política e sobre o seu confronto com as verdadeiras proezas da sociedade espanhola (da investigação, dos ensaios clínicos, da reflexão em curso que transformará a criatividade nos próximos tempos, o trabalho coletivo, a cooperação e tantas outras). Por sua vez, António Muñoz Molina (link aqui) analisava da sua varanda na capital espanhola o contraste entre a ruidosa concentração automóvel da manifestação do VOX e a manhã calma do sábado de 23 de maio numa Madrid ainda em desconfinamento muito gradual.

Se o problema político da Espanha fosse apenas o PP “perder los papeles” isso teria sérias consequências para a direita espanhola mas certamente alternativas no interior do PP tenderiam a emergir.  O problema é que praticamente toda a política espanhola está nessa via, com toda a série de interações e reações que tende a gerar até ao ruído final de uma nova crise política.

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