terça-feira, 26 de maio de 2020

TÃO INTENSA E EXTREMA ÉS TU, VIZINHA ESPANHA



(O jornalista Fernando Salgado, que tive o prazer de repetidas vezes reencontrar nas minhas incursões profissionais pela Galiza, é um homem sensato que podemos inserir num vasto grupo de intelectuais e jornalistas que se identificam com a questão galega na perspetiva do PSOE e da sua afiliação em torno do PSG (o PSOE galego). A sua crónica de hoje na VOZ de GALICIA adquire nesse contexto um significado mais amplo e tomo devida conta da sua metáfora.

A crónica de Fernando Salgado (link aqui) tem por mote o desgoverno governamental que vai grassando pela vizinha Espanha, numa sucessão infinda de casos e contra-casos diários e não estou a falar, pelo menos diretamente, de casos pandémicos.

Vale a pena citar o início da sua crónica:

Barco à deriva

O barco com bandeira espanhola navega à deriva, com mais entradas de água no seu casco do que um queijo gruyère. Chocou com um iceberg que não estava nas cartas de navegação e a água inunda os camarotes, especialmente os de terceira classe.

Perante uma tragédia de tal magnitude, o capitão está numa trajetória de derrota. Não é o responsável pela catástrofe, mas antes da sua gestão e da operação de resgate. E também dos erros inevitáveis, alguns de grande porte e imperdoáveis, como descongelar a contra-reforma laboral prevista em tempos da velha normalidade, o que supõe, entre outros efeitos perniciosos, dificultar a chegada do indispensável auxílio europeu.

O capitão acaba mal quando o barco encalha. As crises – como sucedeu com a de 2008 – tendem a varrer governos qualquer que seja a sua orientação e condição. Caem como fruta madura ou como fruta podre, mas caem. Se isto é assim, porque é que os oficiais do nosso barco, amotinados contra o usurpador do cargo, têm agora tanta pressa para derrubar o capitão, sem sequer esperar que a tormenta amaine? (…)”

Já me vieram à mente várias metáforas para descrever o que sinto quando todas as manhãs percorro os principais jornais espanhóis, da esquerda à direita e, sempre que possível, procurando inteirar-me das múltiplas impressões que emergem do mosaico espanhol a desconfinar a velocidades muito diferenciadas. Com a Galiza e o País Basco a pensar já em eleições, a Catalunha enterrada nas suas próprias contradições (estranhamente o franjinhas Puigdemont parece ter desaparecido da atualidade comunicacional), Madrid em polvorosa numa direita que não se entende e com a restante Espanha um pouco atónita pela impotência que grassa no país.

O conjunto imenso de sinuosidades que a ação governamental tem enfrentado e ela própria promovido nos seus equilíbrios internos instáveis e nos fogachos de negociações com os parceiros mais inesperados (até o Bildu basco foi chamado à liça deixando o próprio PNV perfeitamente aturdido). Bem sei que o iceberg não estava indicado na carta de navegação, como o diz Salgado, mas o que tem saído das vozes e imaginação dos seus principais membros está para além do imaginável pelo mais comum dos mortais. E o que é impressionante é que a perturbação atinge até os mais sóbrios e que eu esperaria ver resguardados das tontices mais flagrantes. Há dias em afirmação produzida à Radio Siete, a vice-Presidente do Governo saiu-se com esta acerca da letalidade pandémica em Espanha: Nova Iorque, Madrid, Teerão e Pequim estão praticamente em linha reta.

A perceção de Salgado tem importância pois é elaborada a partir do campo de ideias que apoiaria em princípio um governo PSOE. Outro significado e alcance tem o sempre virulento Barreiro- Rivas pois a sua perceção é elaborada a partir de fora desse entorno: “ (…) E por isso chegamos à conclusão de que uma coligação contraditória e desleal entre o PSOE e o UP, apoiada por uma maioria instável e incoerente, formada pelos maiores inimigos do país e do bem-estar, misturada com nacionalismos e localismos, e incapaz de formular o mais mínimo acordo económico e social contra a crise que está aí à porta, era, não apenas a melhor saída entre as possíveis, mas a mais desejada por uma gente que, no uso da sua santa liberdade, leva cinco anos a construir parlamentos ingovernáveis e a gerar gulosas oportunidades para os líderes mais patifes e temerários da Eurásia. (…)” (link aqui).

Neste naufrágio vejo progressivamente o modelo da Espanha das Nações a mostrar diariamente a sua inviabilidade, pois não haverá melhor situação de teste à governação multinível do que este que a vizinha Espanha está neste momento a testar. A escolha democrática dos Espanhóis tem prevalecido e eternizado o problema. Às vezes penso que se produziu em Espanha uma estranha convergência histórica de lideranças temerárias e o desaparecimento também estranho de lideranças mais sensatas.

Tão intensa e extrema a vizinha Espanha.

History matters … e de que maneira.

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