segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

A ARMADILHA DO CRESCIMENTO

 


(A proximidade que tenho em termos pessoais à Comissária Europeia Professora Elisa Ferreira e o meu pudor, fruto da minha geração, de fazer eco dessa proximidade têm contribuído fortemente para não dar suficientemente conta e importância ao que de muito importante ela tem concretizado na sua função e clamar com veemência como estamos agradecidos por isso. É altura de quebrar em parte essa penalização, porque a publicação de mais um relatório da Coesão é sempre um acontecimento, dado o notável aprofundamento analítico que as suas sucessivas edições têm apresentado e sobretudo porque Elisa Ferreira produziu numa entrevista ao ECO importantes e pertinentes reflexões, que estão muito para lá da vulgata e banalização com que estes temas são tratados no debate público nacional e até europeu…)

Uma breve pesquisa que realizei sobre os ecos da atrás referida entrevista ao ECO (link aqui) mostra que o tema “armadilha do crescimento” foi o que mais atraiu os editores e jornalistas. E há razões para isso. Existe uma certa tradição na ciência económica de usar a metáfora do “trap” (armadilha), sendo talvez a “poverty trap” (armadilha da pobreza) a que está mais divulgada entre nós. A metáfora corresponde à perceção de que por vezes os fenómenos económicos, sobretudo quando analisados numa perspetiva estrutural e dinâmica, podem gerar situações de estagnação e bloqueio, gerando equilíbrios que se perpetuam, seja na pobreza, na baixa produtividade ou no baixo crescimento. A relativa agonia de que os temas do desenvolvimento estrutural padeceram em muitos períodos da ciência económica dominante, em que o primado da formação de preços e dos equilíbrios naturais de mercado se sobrepôs com clareza aos temas da mudança estrutural, explica em parte a menorização do estrutural e por isso a metáfora das “armadilhas” é com parcimónia utilizada. Essa cedência significaria sempre confirmar que o mercado se deixa por vezes enredar em círculos viciosos que reproduzem equilíbrios que, por definição, não são virtuosos. A isto há que acrescentar alguma má consciência de economistas do desenvolvimento que meteram a mão na massa, não no sentido da corrupção, esclareça-se, mas que viram países em que trabalharam e prescreveram reformas estruturais transformar-se em verdadeiros atentados à democracia, dando guarida a ditadores e outros espécimes sem escrúpulos.

O já referido Relatório da Coesão recentemente publicado (link aqui) regista a evidência de que alguns países e regiões, depois de um esforço de modernização infraestrutural largamente apoiado por Fundos Europeus Estruturais e de Investimento, como é o caso de Portugal e das nossas regiões da convergência (Norte, Centro, Alentejo e Região Autónoma dos Açores), tenderam a estagnar a sua trajetória de crescimento depois de atingirem os 75% do produto per capita europeu.

O 8º Relatório da Coesão faz-se eco de uma investigação de Iammarino, Andrès-Pose e Storper (2020), “Falling into the Middle-Income Trap? A study on the risks for EU regions to be caught in a middle-income trap”, que parte da evidência de que um grupo de economias com produto per capita entre os 75 e os 100% da média comunitária não respeitam o princípio da convergência, crescendo abaixo dos países que estão acima do PIB per capita europeu e revelando sinais de estagnação. É sobre esta evidência que Elisa Ferreira constrói a sua entrevista.

A investigação que serve de base ao Relatório da Coesão identifica a referida armadilha a partir de uma abordagem que combina essencialmente três dimensões do dinamismo económico, a variação do produto per capita, da produtividade e do emprego. A análise é globalmente muito simples, sendo certo que ainda assim se identificam padrões e a criação de diferentes tipos de regiões com padrões de estagnação. A ideia invocada por Elisa Ferreira na já referida entrevista é correta. Regra geral, a modernização das infraestruturas, particularmente das que estabelecem uma relação mais direta com a competitividade e internacionalização constitui um fator de aceleração do crescimento económico. Foi o caso de Portugal. A explicação prende-se sobretudo com o facto dessa modernização infraestrutural determinar um campo diversificado de externalidades positivas, particularmente relevantes em regiões que apresentavam já um padrão de forte internacionalização, como é o caso do Norte. No caso português, é bom também não ignorar o contributo muito relevante dos Fundos Europeus através dos PEDIP para gerar um período de forte modernização de equipamento produtivo nas empresas. A enorme pressão para reconhecer as vantagens dos chamados fatores imateriais de competitividade faz com que se ignore esta verdade: por mais que a importância das ideias e dos fatores imateriais se revelem no crescimento é através da modernização de equipamento que essas vantagens acabam por ser introduzidas e nessa altura as empresas portuguesas realizaram de facto um esforço notável de reequipamento.

Obviamente que as externalidades positivas da modernização infraestrutural não geram efeitos que durem para sempre. O que elas permitem é conseguir que as regiões beneficiárias nivelem com a dotação infraestrutural das suas concorrentes no mercado internacional. Tendem por isso a enfraquecer progressivamente os efeitos de externalidade. O que parece acontecer nestas regiões é que a fonte de dinamismo que a modernização infraestrutural proporcionou possa ser substituída por novas fontes de dinamismo. O desvio perverso que a economia portuguesa apresentou nos anos 2000 para a vertente dos não transacionáveis sugere que a dimensão infraestrutural e imobiliária “se apegou ao poder” e resistiu até ao ajustamento da Troika a ser substituída por outros fatores de dinamismo.

Qual seria a trajetória de uma rotura para com a armadilha do crescimento?

Em teoria, essa rotura teria dois tempos:

  • Primeiro, perfilar-se um conjunto de empresas capazes de romper com os constrangimentos estruturais mais conhecidos – criação de emprego mais qualificado tirando partido da melhoria sensível da oferta de qualificações no país; melhorias de condições de gestão; redução de constrangimentos institucionais, como melhoria da governação económica, redução de custos de contexto; melhoria das condições de autonomia financeira;
  • Segundo, gerar-se um processo típico de pedra no lago, fazendo com que a frente empresarial em que alguns destes constrangimentos foram ultrapassados dê origem a uma banda mais larga de efeitos abrangendo cada vez mais empresas e esperando que alguma destruição criadora vá eliminando do sistema empresarial empresas marginais e incapazes de dar a volta.

No meu modesto entender, a estagnação ou a armadilha do crescimento à nossa moda explica-se essencialmente pelo facto do primeiro movimento não estar ainda totalmente concluído, visível na perda de dinâmica do investimento produtivo apesar dos incentivos europeus ao investimento, na inércia da baixa autonomia financeira e na presença de manifestações agora mais pontuais de custos de contexto. E também pela ainda reduzida manifestação do segundo movimento – aquilo que vai mexendo não é ainda suficiente para compensar a inércia dos que teimam em não mexer estruturalmente.

Já aqui referi em post anterior que ainda não temos um conhecimento profundo da recomposição, virtuosa ou perversa, da economia portuguesa que a pandemia terá determinado. O que adensa as minhas dúvidas.

A entrevista de Elisa Ferreira é muito fora da caixa e promissora quando ela identifica os limites da política de coesão para atacar o problema da armadilha, com a abrangência de instrumentos que ela exige. “São necessárias outras políticas europeias e nacionais, disse ela, sublinhando a necessidade de intervenção coordenada que, em bom rigor, está ainda longe de acontecer em ambos os palcos, o europeu e o nacional. E talvez convenha não retirar da equação os mecanismos do desenvolvimento desigual no interior da própria União, visível por exemplo no diferente ritmo de crescimento das regiões metropolitanas europeias. Convém não esquecer que os mundos da inovação são mundos em que reina a regra dos rendimentos crescentes, ou seja, os mais apetrechados tendem a apresentar melhor desempenho. E, como sabemos, a modernização infraestrutural faz parte dos estádios iniciais das trajetórias de inovação, mas não se confunde com o seu âmago.

De qualquer modo, a uma Comissária Europeia cabe apresentar os problemas com clareza e com esta entrevista e outras intervenções que teve fez mais pela clarificação dos problemas e sondagem de vias de intervenção do que muitos que a antecederam. Confirmando um princípio que nunca devemos esquecer: é possível ter pensamento inteligente sobre a Europa a partir de países como Portugal e se isso acontece a partir das próprias instituições europeias ainda melhor.

Obrigado Elisa.

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