(Tenho dedicado neste blogue uma especial atenção, direi mesmo uma espécie de compromisso, à divulgação e defesa de uma ciência económica e consequente prática de investigação que não modele artificialmente a realidade, antes se deixe interpelar por ela, permanecendo aberta à velha ideia de que basta uma evidência sólida para contrariar uma teoria. Nos últimos tempos, com a Grande Recessão de 2007-2008 e a Crise Pandémica mais se reforçou esse compromisso, embora continuem por aí alguns protagonistas que preferem inventar uma nova realidade a deixar-se interpelar pela “real” realidade. Fiel à minha ideia de que o debate de ideias económicas nos EUA está a anos luz do equivalente na Europa, tenho estado atento à nomeação dos novos Governadores para o Banco da Reserva Federal e aí encontrei material de primeira para continuar aquele meu compromisso. E se alguém tem dúvidas sobre a superioridade do debate americano, um Nobel de Economia que muito admiro, Paul Romer, e um economista de primeira água de Berkeley, Bradford DeLong, vêm em meu auxílio atribuindo à nomeação de Lisa D. Cook a importância que ela merece. Os tempos estão a mudar, só espero que finalmente o ensino da economia se deixe ele próprio interpelar por esta onda.)
Pois a matéria em causa emerge do cruzamento de ideias suscitada pela nomeação que Biden propôs da macroeconomista Lisa D. Cook para o corpo de governadores do FED. Como a leitura do discurso de Lisa Cook perante o Senado americano o demonstra cabalmente (e por isso o traduzi, pois acho que é um documento notável e como gostaria que alguns dos cargos públicos em Portugal exigissem no Parlamento declarações similares), Lisa D. Cook não só é mulher, como é negra e é uma macroeconomista que se deixa interpelar pela realidade (o seu discurso no Senado tem elementos preciosos para compreender este ponto).
A nomeação de Lisa D. Cook obviamente que suscitou entre os meios afetos aos falcões da política monetária e à economia que teima em inventar a sua própria realidade reações adversas. Talvez a mais habilidosa tenha sido a de John Cochrane (link aqui), um macroeconomista profundamente ligado às questões financeiras e que uma vez ou outra terá sido zurzido neste espaço. Ora, nestas coisas, é preciso autoridade e aqui o nome de Paul Romer, sobretudo depois do seu Nobel, coloca muita gente em sentido. O blogue de Romer é daqueles que vale a pena seguir com atenção, pois a parcimónia de posts é muita e isso significa (contra este meu vício diário de escrita falo) que vale sempre a pena visitá-lo.
Paul Romer tem no seu último post (link aqui) uma elegante crítica aos que torceram o nariz com a nomeação de Lisa D. Cook. Fá-lo dizendo que a nomeação de Lisa Cook seria sempre mais aconselhável do que a de um macroeconomista como ele próprio, insinuando já que Cochrane não o admite, ele Nobel de Economia, acha que sim. Notável.
A fundamentação para a sua avaliação parte de uma divisão conhecida entre os macroeconomistas: o que constroem teorias e modelos que serão depois testados por evidências e os economistas empíricos que partem com rigor de factos, analisando-os e chegando a conclusões que muitas vezes mostram que determinadas teorias eram falsas.
Vejam esta preciosidade de um Nobel:
“Teorias e factos
Há um papel a desempenhar para a teoria que eu e John (Cochrane) fazemos. Os teóricos constroem ferramentas. Algumas dessas ferramentas tornam-se úteis porque estão em linha com os factos. Muitas não. Algum dano resulta quando se constrói uma teoria imaginativa que se torna errada a partir do momento em que os economistas empíricos a testem com factos antes de ser utilizada como apoio a uma qualquer decisão importante.
John é um piloto de planadores pelo que compreende a importância desta divisão intelectual do trabalho. Quando um avião de passageiros fica sem combustível e sim isso pode acontecer, nem John nem eu gostaríamos de nos apoiar num teórico qualificado em aerodinâmica computacional para escolher entre aterrar num aeroporto próximo com uma pista pequena ou num mais distante com uma pista mais longa. Ambos queremos que a escolha seja feita por alguém que conheça os factos sobre a velocidade de aterragem e os rácios de deslizamento do avião.
Pela mesma razão, ele deve também preferir alguém como Lisa D. Cook para integrar o corpo de Governadores do FED do que eu próprio, já que ela insistirá em que as decisões importantes têm de ser tomadas com base em factos e não em teorias. Fazendo-o, ela apoiará o compromisso fundamental da ciência – o de que um facto derrota uma teoria a todo o tempo.”
Elegante e demolidor, na linha do que temos aqui exposto sobre Paul Romer, a quem devemos a mais lúcida crítica das duas últimas décadas sobre o uso indevido e pouco honesto da matemática em muita da economia que inventa realidades para se confirmar, sendo ele um economista teórico com ascendência na Física e na Matemática. Estamos conversados.
Resta dizer que uma das mais importantes conclusões do trabalho de investigação de Lisa Cook foi demonstrar que a importância dos aspetos legais no crescimento económico estava para além da garantia da propriedade. Ela demonstrou que a garantia que a lei proporciona em termos de segurança pessoal e de proteção dos cidadãos tem uma enorme importância na atividade de criação de patentes de inovação tecnológica entendida como proxy do crescimento económico.
E nesta linha mais se justifica a tradução para português da declaração de Lisa D. Cook no Senado no âmbito do seu processo de nomeação, que é um documento claramente ilustrativo da cultura americana de serviço público que ainda existe por aquelas bandas apesar das patifarias de Trump. A maneira como Lisa Cook combina as suas origens culturais e familiares (onde emerge Martin Kuther King), a sua formação universitária e o estar próxima dos factos e dos efeitos das crises financeiras sobre as famílias trabalhadoras do Midwest industrial gera um documento notável que deveria constituir material de evidência em muitas aulas de economia.
Que saudades tenho do meu tempo de aulas.
Lisa D. Cook: Declaração perante o Comité sobre Banca, Habitação e Questões Urbanas do Senado dos Estados Unidos da América
‘Senhor Presidente Brown, Senhor Toomey membro do Senado e todos os membros do Comité, muito obrigado pela oportunidade de estar perante vós.
Estou agradecida e honrada pela nomeação feita pelo Presidente Biden para integrar o Corpo de Governadores do Sistema da Reserva Federal. Obtive o meu Doutoramento em Berkeley, presidi ao Conselho de Consultores Económicos e durante décadas ensinei, estudei e investiguei nas áreas do crescimento económico e políticas monetárias. A profundidade e a extensão da minha experiência nos setores público e privado qualificam-me para servir como Governador da Reserva Federal, e se for confirmada a minha nomeação, será para mim uma honra trabalhar com os meus colegas para ajudar a navegar este momento crítico para a economia da nossa nação e para a economia mundial.
Em termos de prioridades, estou de acordo com o Presidente Powell de que a nossa mais importante tarefa será dominar a inflação. Uma inflação elevada constitui uma grave ameaça a uma longa e sustentada inflação, que como sabemos aumenta os padrões de vida de todos os Americanos e conduz a uma larga e partilhada prosperidade. É por isso que me comprometo a manter as expectativas de inflação bem dominadas.
A minha abordagem aos problemas complexos é orientada por factos, dados e análises e pelo trabalho colaborativo. Trabalhei nas Administrações de Presidentes de ambos os partidos e quando decido faço-o baseado em factos e não na política. Sigo o exemplo de Paul Volcker, que muito admiro pela sua inabalável dedicação a uma Reserva Federal independente e não política..
As minhas convicções foram moldadas pela minha educação em Milledgeville, Georgia. Era um Sul em desagregação e ambos os lados da minha família promoviam uma mudança não violenta juntamente com o nosso amigo da família Reverendo Dr. Martin Luther King, Jr. Enquanto as minhas irmãs Pamela e Melanie e eu própria frequentávamos as nossas escolas e piscinas, os meus pais trabalhavam. A minha mãe, Professora Mary Murray Cook e a minha tia Professora Loretta Murray Braxton, integravam as suas universidades e os seus departamentos STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática) segundo critérios de raça e de género, preparando os estudantes para um Sul em desagregação que prometia maiores oportunidades para todos. O meu primo Floyd McKissick, Sr. discursou na marcha sobre Washington e frequentou a Faculdade de Direito da Universidade da Carolina do Norte. O meu tio Dr. Samuel DuBois Cook, estudou com o Dr. King no Morehouse College, e foi o primeiro Afro-Americano com um cargo de Professor numa universidade do sul, tendo sido presidente da Universidade de Dillard. Quero agradecer aos Senadores Warren, Kennedy e Tills, assim como aos outros senadores que homenagearam a morte do meu tio com uma resolução no Senado em 2017.
O sentido de disciplina, esperança e missão em mim incutido pela minha família levou-me do Spelman College a Oxford, à Hoover Institution, a Harvard, mas nunca esqueci de onde vim e os professores dedicados que me ajudaram. Decidi procurar a minha atual posição de carreira como macroeconomista no Midwest industrial com o mesmo espírito de estar perto do modo como as nossas decisões afetam as famílias trabalhadoras. Viver num hub da indústria transformadora em plena crise financeira sublinhou em mim o efeito que as recessões profundas provocam no dia a dia de cada um. E essa é uma das razões pela qual dediquei muito da minha carreira a tentar evitar a próxima crise financeira. Um Sistema financeiro forte e resiliente ajuda as famílias, os negócios e a nossa economia.
A minha investigação sobre o crescimento económico foi informada pelas minhas interações com as famílias, os negócios, decisores políticos e instituições financeiras. Tenho uma extensa experiência de trabalho com vários tipos de bancos, incluindo o serviço no corpo diretivo de uma instituição financeira para o desenvolvimento comunitário, ou CDFI, nos Grand Rapids. Estou particularmente orgulhosa de que os bancos comunitários estejam entre os que me elegeram para trabalhar no Board do Federal Home Loan Bank de Indianapolis. Trabalhei também de perto com a Reserva Federal ao longo da minha carreira, desenvolvendo trabalhos de investigação nos Bancos da Reserva Federal antes e depois de concluir o meu doutoramento, assistindo a conferências sobre política económica e servindo nos painéis de peritos e como diretora do Federal Reserve Bank de Chicago. Há ainda muito para aprender de modo a assegurar que o FED faça o seu trabalho cada vez melhor. A nossa economia está em evolução constante. Aprender a fazer melhor exige humildade, perseverança e perspetivas diversas.
Uma vez mais, é uma honra ser nomeada para este cargo e espero trabalhar com os membros deste Comité. Se for confirmada no cargo, assumirei fielmente os objetivos mandatados pelo Congresso da preços estáveis e emprego máximo, que o Congresso atribuiu à Reserva Federal.
Muito obrigado. Aguardo as vossas questões. “
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