quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

AS RAZÕES DO CLIQUE

 


(Não vai ser fácil ter uma explicação completa e pormenorizada do movimento de voto que o 30 de janeiro nos trouxe, como se o 30 deste mês quisesse ombrear com o sentido revolucionário do 31. A sondagem pós-eleições que será realizada pelo ICS-ISCTE e empresas associadas irá representar uma rara oportunidade para do ponto de vista da ciência política aclarar o clique que se terá produzido, disseminando por todo o território a onda rosa. Na expectativa desses resultados e do seu contributo para o debate político, atrevo-me a ensaiar alguma análise exploratória, processando a vastíssima informação que tem brotado do rescaldo eleitoral.)

Claro que todos percebemos que o PS surfou uma onda gigante de voto útil à esquerda. Mas o interesse analítico está em compreender as razões explicativas para essa perceção se ter formado, gerando um fenómeno típico de que o todo é superior à soma das partes, envolvendo pessoas que não se falaram entre si para gerar esse resultado. Dos votantes ou militantes PCP que na cavaqueira da Praça Geraldes em Évora (ver reportagem de hoje no Público) confessavam o seu voto útil no PS, mesmo à custa da não eleição do competente e esforçado João Oliveira) aos militantes do Bloco que também o fizeram ter-se-á formado essa perceção coletiva que, para usar a linguagem dos economistas, produziu a externalidade positiva da maioria absoluta. Resta saber se a formação da perceção dessa necessidade coletiva envolveu ou não a ponderação do risco da maioria absoluta. Imagino que entre os cerca de 400.000 eleitores que protagonizaram essa mudança esteja gente que não queria a maioria absoluta do PS, que ponderou essa possibilidade mas que mesmo assim votou como votou. Por isso, para mim o fundamental será perceber as razões mais profundas do voto útil à esquerda.

Obviamente que será também importante perceber a importância do novo voto, não apenas o dos jovens eleitores que votaram pela primeira vez (aqui os dados das sondagens anteriores mostravam que era fortemente desfavorável ao PS, reclamando deste um foco no futuro), mas ca sobretudo o da sociedade grisalha que decidiu ir votar. Mas vou concentrar-me no que em meu entender terá gerado a expressão do movimento do voto útil.

A minha explicação assenta num argumento central, reforçado pela perceção do modo como foi gerida a pandemia em Portugal.

O argumento parece-me óbvio e regresso a ele já depois de em muitos posts anteriores ter sido objeto de algumas reflexões.

Falando claro, acho que a direita nas suas diferentes variantes em Portugal nunca entendeu bem as dificuldades sobretudo sociais que o ajustamento impiedoso das dívidas soberanas provocou em inúmeras franjas da população portuguesa. Assim, como não entendeu as razões da geringonça ter aguentado uma legislatura. Como não entendeu a penosidade das primeiras, obviamente que não entendeu a importância que os mais penalizados atribuíram à reposição de rendimentos (as tais condições objetivas que justificaram a geringonça e que se tornaram como se sabe irrepetíveis).

Reconheço que este meu argumento tem uma dificuldade. Ele não consegue explicar a vitória de Passos Coelho em 2015. É verdade. Ela poderá ser eventualmente explicada pela continuidade da orgia de poder que acompanhou o ajustamento da Troika (e ninguém esquece o ter ido além da Troika que até espantou alguns funcionários da Comissão Europeia) e admitindo que pelo menos uma parte da base de apoio que deu a vitória relativa a Passos Coelho não terá sido fortemente penalizada pelo ajustamento. Ninguém esquece que uma certa direita do PSD viu no ajustamento da Troika uma oportunidade única para varrer alguns dos constrangimentos mais sérios à disseminação das suas ideias.

Ora, neste contexto, a inabilidade de Rio em demarcar-se desta ameaça, mesmo que se saiba que não morre de amores pela personagem Passos e seus apaniguados e o próprio discurso da Iniciativa Liberal a ajudar à missa contribuíram para recuperar velhas memórias. O voto útil à esquerda terá assim resultado de muita gente ter pressentido que não valia a pena arriscar o regresso, descontando o papão da maioria absoluta. As “tracking polls” dos últimos dias, dramatizando o empate técnico, terão sido o detonador da reemergência das imagens de tais memórias.

Este argumento para o clique do voto útil à esquerda vale também para a sobranceria do Bloco e do PCP em não entenderem as consequências do chumbo do orçamento e a ingenuidade também sobranceira de imaginarem que o eleitor de esquerda alguma vez aceitaria a treta de que foi António Costa que quis forçar o chumbo orçamental (estou mesmo convencido que não foi).

Curiosamente, nas eleições de 2019, alguns politólogos admitiam que a geringonça poderia tender a gerar o voto útil à esquerda. Isso não aconteceu, pelos vistos foi necessário o rastilho do chumbo do orçamento de Estado.

Finalmente, creio que a valia deste meu argumento central é fortemente corroborada pela perceção coletiva de que a gestão sanitária, económica e social da pandemia foi positiva, com exceção dos libertários e de algumas franjas da elite da capital incapazes de afagarem o seu ego em confinamento.

Tenho tido a feliz oportunidade de acompanhar o estudo que uma equipa coordenada pelo meu filho mais velho Hugo Figueiredo (Universidade de Aveiro) está a realizar para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, com uma análise exaustiva do que foram os dois anos de pandemia em Portugal. Espero sinceramente que o estudo seja publicado o mais rapidamente possível para me poder referir a ele com mais consistência.

Mas o que me interessa realçar é que, depois de um período bem-sucedido de reposição de rendimentos com a geringonça que não comprometeu o crescimento e não incendiou os mercados internacionais, o eleitor médio compreendeu também que a gestão da pandemia foi no plano comparativo internacional muito aceitável. Cabeças de cartaz eleitoral em Coimbra e em Leiria, Marta Temido e António Lacerda Sales, personagens inequivocamente massacrados pela voragem diária da comunicação da pandemia, sujeitos por isso a um desgaste enorme, protagonizaram vitórias relevantes do PS, particularmente em Leiria até com o mediático empresário Henrique Neto a insinuar-se na campanha do PSD. Querem melhor indicador do que este?

O estudo da FFMS irá mostrar que existe informação objetiva bastante para justificar essa perceção coletiva que se formou e não estou a falar a apenas de termos chegado em certa altura ao primeiro lugar mundial da vacinação.

A matéria mais interessante que fica prometida para quando o estudo for publicado e espero que a FFMS faça dele a divulgação que merece é a dos efeitos de recomposição do mercado de trabalho e da economia portuguesa que a pandemia terá gerado. É matéria mesmo muito interessante.

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