sábado, 26 de fevereiro de 2022

COM ANTÓNIO ARAÚJO

 


(As crónicas de António Araújo, aos sábados, no Diário de Notícias, são de per si um acontecimento, qualquer que seja o local em que as possamos ler, embora lidas na pracinha de Caminha tenham para mim um outro significado. A crónica de hoje não foge à regra. É um verdadeiro melting pot cultural, combinando sabedoria profunda com pontes decisivas entre diferentes tempos. Cientologia, Marco Polo, William Burroughs uma das inspirações da beat generation, Nietzsche, Ordem dos Assassinos, “nada é verdade, tudo é permitido”, Rússia contemporânea, tudo para contextualizar o desplante de Putin. Mas mais do que tudo uma crónica que é um libelo contra todas as mentes torcidas que se esforçam por estes dias em propagar as trapaças do autocrata russo…).

E perante a qualidade do escrito, nada melhor do que citar o original, felicitando o autor por tanta lucidez que até dói (link aqui):

“(…) Com 190 mil soldados colocados na fronteira com a Ucrânia, o presidente russo teve o desplante de acusar a Ucrânia de “genocídio” no leste do país, responsabilizando-a pela “continuação dos derramentos de sangue”. De caminho, rasgou os acordos de Minsk, negou à Ucrânia o direito à existência (“nunca teve uma tradição consistente com uma verdadeira nação”) e, claro, ordenou o envio de tropas “de paz” para Donetsk e Lugansk. A leste nada de novo: já tinha sido assim na Geórgia, na Crimeia e o que espanta não são as mentiras descaradas de Putin, mestre da aldrabice. O que impressiona é, isso sim, que entre nós ainda haja gente que, por sectarismo abjecto, continua a a amplificar e divulgar as trapaças do ditador russo. Perante tudo o que temos assistido nas últimas semanas, com o avolumar de tropas russas na fronteira e as bárbaras declarações de Putin na televisão, o patético Avante teve o desplante de falar da “obscena campanha provocatória do imperialismo contra a Federação Russa”, enquanto nas páginas do Público o servil Manuel Loff insistiu na tecla do “imperialismo” do Ocidente, com a sua visão oriental e colonial da Rússia. O Óscar da sem-vergonha vai, porém, para Boaventura Sousa Santos que diz com tranquilidade que “é provável que a Rússia invada o leste da Ucrânia não por expansionismo, mas devido à “política de hostilização movida pelos EUA, pela OTAN e pela UE”. Quer dizer, Putin já invadiu a Geórgia, já abocanhou a Ossétia do Sul e a Abecásia, já anexou a Crimeia, mata friamente os seus opositores (Boris Nemtzov, Boris Berezovsky, Stalisnav Markelov, Anastasia Barburova, Sergei Magnitsky, Natalia Estemirova, Anna Politkovskaya, Alexander Litvinemko, Sergei Yushenkov, Yuri Shchekochikhin), mas a culpa nunca é da Rússia, coitadinha, mas da “política de hostilização” do Ocidente”.

A crónica acaba por articular todo este despudor de normalização do autocratismo de Putin, o que é totalmente distinto de não desprezar ou ignorar o papel da Rússia na normalização de condições de segurança europeia e mundial, com a resistência do autoritarismo de Trump e a ameaça que ela representa no caso de um eventual regresso ao poder nos EUA.

Esta é a questão verdadeiramente relevante e que nos deve merecer toda a nossa energia de combate. Verdade e democracia contra falsidade das notícias e autoritarismo, coisas simples, mas que a consumarem-se podem configurar o caos definitivo.

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