sábado, 12 de fevereiro de 2022

A DESISTÊNCIA DA POLÍTICA

 


(As crónicas do historiador António Araújo no Diário de Notícias são um prodígio de criatividade que bem justificam a compra do jornal em papel, para quem não tem assinatura digital. Personagens e acontecimentos da História praticamente ocultos para o mais vulgar dos mortais são revisitados e, produto de uma cultura profunda, trazem-nos reflexões contemporâneas que nos deixam mais ricos. Longa vida ao António Araújo. A crónica de hoje, “Filosofia da Trufa”, link aqui, não foge à regra. Construída em torno de uma personalidade da gastronomia francesa e da arte visual que a diferenciou no seu período de ouro até à emergência da Nouvelle Cuisine, Marie-Antoine Carème, chef de Napoleão, do Czar Alexandre 1º e do banqueiro Rotschild, acaba por ser conduzida a uma importante reflexão sobre a política.)

Comecemos, assim, por citar a parte final da crónica, pois é torno dela que se explica esta reflexão:

“(…) Numa entrevista recente ao El País, o filósofo Peter Sloterdijk disse que muitos cidadãos do Ocidente dão hoje absoluta prioridade ao privatism, o conforto da vida privada – de que a gastronomia é exemplo máximo – e deixaram de acreditar em ideologias ou na política, resignando-se aos tristes líderes que temos. Sloterdijk refere o caso de Boris Johnson que todos já perceberam tratar-se de um palhaço, mas que todos preferem não levar a sério ao invés de lutarem pela sua queda. É estranho, na verdade, que perante tantas notícias de festas e bebedeiras, não existam manifestações gigantescas em Londres a exigir a demissão daquele mentiroso encartado. Quanto mais desistirmos da política, mais ela desistirá de nós”.

A alusão a Boris Johnson é curiosa, pois quanto a esta personagem, que nos deixa aterrados por pressentir que um bobo da corte participa em decisões relevantes para o futuro do mundo e das próximas gerações, permanece a interrogação se é de facto um parvalhão de Eton ou se intuiu precisamente que com o tal fenómeno da desistência da política tudo é possível.

A democracia britânica, por vezes tão adulada por parte do nosso comentário político, para glorificar as virtudes do seu Parlamento, vive hoje dos votos de gente que, tudo indica, se está perfeitamente nas tintas em saber se quem os lidera é simplesmente um palhaço, um macaco amestrado ou outra personagem qualquer por esdrúxula que se apresente.

Este fenómeno da desistência da política que atravessa transversalmente praticamente todos os grupos etários da população no Ocidente não está ainda estudado em profundidade e não sabemos ainda com precisão se é mais ou menos intenso consoante a estrutura de qualificações ou outros grupos de controlo como profissões, por exemplo.

O fenómeno é complexo e vem misturado com outras manifestações que são o combustível perfeito para o avanço do populismo, tais como o desprezo pelas elites, e daí as suas raízes profundas não serem facilmente identificáveis.

A desistência da política estará relacionada, entre outros fatores, com a intensificação da desigualdade que tem grassado nas sociedades ocidentais, ainda mitigada nas sociedades que conseguiram fazer avançar o modelo de estado social europeu e exacerbada naquelas em que o modelo social permaneceu truncado e fortemente abalado pela impiedosa Grande Recessão de 2007-2008 e agora pela pandemia. A concentração empresarial e o cada vez menor número de indivíduos e empresas que se destacam nos 1% mais ricos, apropriando uma cada vez mais elevada percentagem de rendimento, produzem nas sociedades ocidentais uma cortina de fumo que leva uma grande parte dos cidadãos a rapidamente identificarem a política com esses grupos de interesses.

Os americanos têm produzido análises e documentos como séries ou filmes que mais do que outros nos têm descrito os contextos favoráveis a essa onda. “Hillbilly Elegy: A Memoir of a Family and Culture in Crisis” (2016) de J. D. Vance é talvez a referência mais poderosa neste capítulo, já adaptado ao cinema. Mais recentemente, há uma série poderosa na HBO Portugal, “Somebody, Somewhere” que é também um documento notável para compreendermos o fenómeno. O que temos nestes relatos é a apresentação de um tecido social em fratura exposta e prolongada, gerando um conjunto de seres em profunda infelicidade, que tanto podem ser seduzidos pelo canto do Trumpismo (como o foram de facto) ou outras formas de populismo, como podem permanecer num limbo de total desistência da política, virados para si mesmos e no mais profundo isolamento social.

Certamente que a desistência da política sugerida por António Araújo tocará outros contextos. A ideia de que o “privatismo” constitui outra fonte de criação de desistentes da política, a que os libertários de hoje, tão presentes no negacionismo anti-vacinas mais abjeto, têm dado um forte impulso, será certamente um campo analítico a explorar. Se tivermos em conta que um dos sustentáculos da democracia é o pressuposto de que o cidadão eleitor é capaz de eleger os seus representantes, escolhendo-os em função das suas convicções, a generalização desta onda de desistentes da política é tão ameaçadora como os populismos mais extremos.

Estes tempos não se recomendam.

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