(Tenho boas recordações do meu anterior trabalho de cooperação com o País Basco, ainda a ETA existia e ameaçava tudo e todos. A qualidade da administração regional sempre me impressionou e causava dó o desequilíbrio existente entre a autonomia como essa administração regional negociava e cooperava e a debilidade de autonomia de decisão das estruturas de planeamento regional em Portugal. Mas grandes personalidades da sociedade basca estavam inseridas em estruturas comunitárias e era por isso visível a notoriedade europeia do que se ia fazendo mesmo nessas condições de declarado e assumido desequilíbrio institucional. Por essa via fui ganhando sensibilidade à anomalia democrática que a presença da ETA representava e por mais que a história fosse invocada nunca consegui entender a violência terrorista da organização, sobretudo quando abandonou o período dos atentados seletivos para se entregar à orgia da violência indiscriminada, envolvendo população que cometera o crime de continuar a querer viver no País Basco. O desmantelamento da organização terrorista deixou marcas, apesar de tudo na sociedade basca a inovação continua a florescer, o que não significa que alguns fantasmas permaneçam, mais ocultos umas vezes, revigorados outras vezes.)
Já aqui e em devido tempo referi o monumento que para mim representa o Pátria de Fernando Aramburu, mais o livro do que a série televisiva, embora esta não possa ser ignorada. A obra de Aramburu é a única que ensaia uma visão não necessariamente comprometida com uma das partes, e por isso foi violentamente criticada por alguns setores da sociedade espanhola, com maior dificuldade em digerir o desmantelamento da organização terrorista e a normalização das forças políticas (Bildu) que nunca esconderam a sua proximidade aos ideais da ETA. Não por acaso, embora as diabruras da adolescência do escritor tenham o País Basco e San Sebastian por origem, Aramburu está já há longos anos radicado na Alemanha, e talvez tenha sido essa distância que lhe tenha permitido a ena aiada visão distanciada do conflito basco e a narração da violência com um equilíbrio que considero notável (aceito que facilita estar longe e nunca ter sofrido na pele a violência etarra).
Mas não é para falar do Patria de Aramburu que este post é construído, enquanto a obra continua a sua ampla difusão, o que dando vendo os números da difusão em Espanha, se compreende que afinal as críticas violentas que mereceu a certos quadrantes da vida política espanhola não estão refletidas na procura que o livro teve.
O post de hoje reedita alguns dos fantasmas a que antes me referi em função de dois elementos: primeiro, uma obra que estou neste momento a ler e, segundo, de uma percentagem que surgiu esta semana divulgada, na sequência de uma missão do Parlamento Europeu a Espanha e que em princípio dará origem a um relatório com recomendações endereçadas ao Governo de Sánchez.
A obra a que me refiro é o último romance do notável Javier Marías, Tomás Nevinson (Alfaguara), que de certo modo é uma espécie de prolongamento do incontornável Berta Isla do mesmo autor, agora desenhado em função do marido daquela.
Tomás Nevinson, com nacionalidade britânica e espanhola, é um funcionário dos Serviços Secretos britânico (com MI5 e MI6 ao barulho) que, depois de longos anos de atividade naquela organização e especial atenção às questões do IRA, regressa a Espanha para uma espécie de reforma, que no caso de uma atividade como a dos serviços secretos não tem o mesmo significado, como Nevinson e narrador nos diz, das reformas de todos nós. Para além de reflexões eloquentes sobre o significado de pertencer a uma organização deste tipo e deixar de estar estando na organização e de factos também curiosos sobre atentados falhados à figura de Hitler, Nevinson é pressionado por um seu antigo chefe britânico, com a colaboração dos serviços de inteligência espanhóis a voltar ao ativo para assumir uma missão na região noroeste de Espanha.A missão é curiosa e atravessa os mencionados fantasmas da ETA. Há três mulheres que foram identificadas naquele território como podendo ser uma antiga dirigente da ETA, com ligação profunda aos atentados sanguinolentos do Hipercor em Barcelona e de Saragoça, com nacionalidade irlandesa e espanhola, e pressupostas ligações simultâneas à ETA e ao IRA e que desaparecera sem deixar rastos. A missão de Nevinson consiste em instalar-se numa pequena cidade daquele território, designada arbitrariamente de Ruán e contactar o mais possível com as três mulheres, concluir se alguma delas corresponde à figura procurada e tomar uma decisão final. Os termos dessa escolha são claros: ou avaliar a probabilidade de a levar a tribunal ou executá-la.
A descrição que Javier Marías realiza dos contextos que irão conduzir Tomás Nevinson ao conhecimento, mais íntimo ou distante das três mulheres, é um exercício notável de descrição dos contextos sociais tão distintos em que as três mulheres estão mergulhadas. Como certamente alguns dos leitores não leram o livro, que recomendo vivamente sobretudo aos que apreciaram o Berta Isla e obras anteriores de Marías, não vou desvendar o desfecho. O livro interessou-me também na medida em que constitui uma outra representação dos fantasmas da ETA, neste caso dos mais ocultos já que a personagem em causa desaparecera sem deixar rastos convincentes.
O segundo elemento diz respeito a uma missão do Parlamento Europeu em Espanha que me tinha totalmente escapado e que é a inspiração de um potente editorial do inconfundível Pedro J. Ramiréz, diretor do El Español (link aqui).
A percentagem em causa diz respeito à percentagem de atentados da ETA com assassínios que continuam por resolver judicialmente com os correspondentes processos criminais. A percentagem surpreendeu-me, 44%, o que significa que cerca de 400 famílias continuam na expectativa de uma identificação dos responsáveis e da aplicação da justiça. E entre as recomendações dessa missão a que o jornalista atribui especial importância está a que refere “garantir que os benefícios penitenciários dos condenados por terrorismo sejam vinculados à sua cooperação na resolução dos atentados de que tenham conhecimento como uma demonstração adicional da autenticidade do seu arrependimento”.
Os fantasmas não desapareceram e os 44% são de facto uma percentagem demasiado elevada para os suprimir. Mas, pelo que intuo a partir da minha modesta perspetiva, tenderão a continuar a aparecer, sobretudo porque no âmbito da caótica geometria variável das alianças parlamentares a que o PSOE se tem dedicado não podemos ignorar que o BILDU tem votado muitas vezes (por exemplo na legislação laboral) com o Governo.
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