quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

E AFINAL NÃO ERAM PERFEITOS …

 


(As sociedades escandinavas exercem sobre alguns de nós algum fascínio. Compreende-se bem esse fascínio. Independentemente das idiossincrasias de comportamento e estilo, aquelas sociedades revelam-nos que afinal é possível combinar estado e proteção social de qualidade com inovação, proteção no desemprego e flexibilidade do mercado de trabalho, avançando enfim em domínios em que o reformismo tem tentado avançar sem êxito noutros países. Apesar disto sou dos que mantenho reservas quanto a descontextualizadas transferências e importações acéfalas de políticas e não será aquele fascínio que me fará convencer que um homem do Sul se transforma por magia num escandinavo de quatro costados. E de vez em quando lá surge um elemento de análise que nos avisa que Eles/Elas não são perfeito(a)s, afinal ninguém o é…)

Inicio esta reflexão no teclado sentindo uma vontade imensa de reler de fio a pavio o TEMPO ESCANDINAVO de José Gomes Ferreira que tanto impacto me produziu em 1969, tinha entrado há pouco tempo na Faculdade de Economia do Porto e com o qual, e com aquela prosa inesquecível do autor, compreendi muito cedo a necessidade de contextualizar não só o tempo mas os escandinavos em geral. O livro e a obra do autor estão em Seixas, pelo que terá de esperar por um fim de semana próximo.

Entre os traços de comportamento e de organização social que contrastam com o caráter fortemente avançado de alguns dos equilíbrios que as sociedades escandinavas alcançaram, o álcool e o isolamento que alguns filmes de Bergman tão bem desenvolvem são exemplos que nos ajudam a perceber que ninguém é perfeito. Algumas sessões no divã daquelas sociedades poderiam revelar-nos outras dimensões que ajudariam a refrear o nosso fascínio.

A revista LANCET acaba de publicar, em regime de Open Access (link aqui), o resultado de uma investigação sobre violência doméstica, datado de 2018, e designado de “Global, regional, and national prevalence estimates of physical or sexual, or both, intimate partner violence against women in 2018”, de autoria de um conjunto de investigadores (Lynnmarie Sardinha, Mathieu Maheu-Giroux, Prof Heidi Stöckl, Sarah Rachel Meyer e Claudia García-Moreno). A prevalência global do fenómeno é aterradora, tanto mais que a investigação foi realizada antes da pandemia, pelo que muito provavelmente a incidência pandémica ter-se-á agravado em 2020 e 2021.

A valia do estudo deriva da sua globalidade, questão que a utilização da base de dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) permitiu alcançar, com uma cobertura apontada para cerca de 90% das mulheres de todo o mundo. É possível verificar que no quadro de uma situação global perturbadora, o modelo europeu emerge com uma diferença positiva, particularmente o que as autoras designam por Europa Central com uma prevalência de 16% e Europa Central com taxa de 20%. Portugal surge no estudo com uma taxa de prevalência de 18%, mas o que me despertou a curiosidade foi o facto de países como a Suécia e a Noruega aparecerem com valores acima do valor médio europeu com 21 e 20%, respetivamente.

No quadro de uma incidência muito prematura, a violência doméstica começa muito cedo como aliás a experiência portuguesa o evidencia com clareza através do namoro como espaço de iniciação a essa perversidade, o estudo dos valores da taxa de prevalência pelo mundo obrigar-nos-ia a uma contextualização rigorosa, pois os próprios conceitos base da investigação dependem fortemente dos contextos sociais e dos modos de organização da família. Não é por acaso que os valores disparam em partes do globo (ver gráfico inicial) em que o subdesenvolvimento e a pobreza absoluta campeiam.

Os dados dos países escandinavos representados impressionam no plano relativo, pois estamos num contexto de desenvolvimento, de rendimento per capita elevado e de modelos avançados de proteção e segurança social, não ignorando níveis também elevados de valorização do papel da mulher na sociedade. A taxa de prevalência é superior à de Portugal, Espanha e Itália, o que não deixa de ser surpreendente. E, com todas as reservas que a comparabilidade de taxas de prevalência da violência doméstica suscita, apetece dizer que … afinal eles não são perfeitos.

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