quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

IMPUNIDADE E FRUSTRAÇÃO

 

(Imagino a sensação de impotência e frustração que o cidadão ucraniano indiscriminado estará por esta manhã a vivenciar perante aquilo que será tudo menos uma intervenção bélica russa seletiva e limitada aos territórios separatistas das duas regiões ucranianas pró-russas de Donetsk e Lugansk. Sensação de impunidade e frustração que é também a minha, cidadão europeu, mas com a profunda convicção de que pela nossa parte essa sensação é contraditória e um pouco cínica, pois os sacrifícios que os Europeus estão dispostos a assumir estão em linha com a baixíssima probabilidade que atribuíramos à hipótese de uma Guerra na Europa de Lisboa aos Urais. Creio que a sensação dos Ucranianos é real e sentida, pois afinal a defesa que podem ter no Ocidente, União Europeia, Estados Unidos da América, Reino Unido e outros aliados resume-se praticamente a uma retórica política e a um escalamento de sanções que ninguém sabe concretamente avaliar ex-ante o impacto dos seus efeitos nos infratores.…)

Já aqui expressei a ideia de que, sobretudo a União Europeia, andou a brincar com as promessas a uma Ucrânia que, como sabemos, está longe de corresponder ao modelo ideal de sociedade e democracia que os ideólogos da desconstrução da União Soviética pensaram que iriam emergir por magia dos escombros soviéticos. Ou seja, brincou-se, é o termo, com promessas à Ucrânia que ninguém podia cumprir, sobretudo atendendo ao estado das opiniões públicas das respetivas sociedades, ansiosas por se libertarem de dois anos de pandemia e nada recetivas a pagar os efeitos de uma resposta mais musculada ao atrevimento de Putin. Claro que também o “pequeno” Zelensky também deveria avaliar a consistência do que o Ocidente lhe estava a prometer, não o fez e pelas primeiras notícias da manhã de hoje terá além do mais avaliado mal as suas próprias forças e rearmamento, a não ser que esteja a imaginar uma guerra de guerrilha com a qual as forças russas se dão regra geral bastante mal.

Estive a ler algumas peças e artigos sobre o incontornável discurso de 21 de fevereiro de Putin (link aqui para o NY Times, aqui para o The Guardian, aqui para a BBC e aqui para a Reuters) que, ao que pude apurar, envolveu mais de 6.000 palavras, com 55 minutos de duração e no qual não me foi fácil identificar nem a presença de papel ou de tecnologia de teleponto.

Trata-se de um discurso que deveria ser analisado nas aulas de ciência política como um exemplo máximo de construção de uma narrativa de significado único, justificativa da agressão ao país vizinho, para uma história muito mais complexa e multi-causas do que aquele terrífico discurso deixa antever. Aliás os russos têm-se revelado verdadeiros “experts” na narrativa da guerra e a sua estratégia de comunicação é bem mais sólida do que a tentativa americana de repetir vezes sem conta “o lobo vem aí”, como se isso atrasasse e perturbasse o sentido de caça desse mesmo lobo.

Na versão que Branko Milanovic dá no Brave New Europe (link aqui) desse discurso, Putin apresenta-se como o garante de que três traições à Mãe russa serão recordadas e combatidas: a traição dos bolcheviques, a das elites comunistas e a dos pressupostos amigos da Rússia.

Destas ameaças a que traz mais água no bico é sem dúvida a da referência à traição dos bolcheviques. O que é que Putin quer dizer com isto?

A explicação é relativamente simples e versa não propriamente sobre a revolução de 1917 mas antes sobre a criação em 1922 da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Surpreendentemente, Putin interroga-se se teria sido necessário satisfazer as pretensões crescentemente nacionalistas das diferentes partes do antigo império russo, concedendo-lhes arbitrariamente realidades administrativas próprias (Repúblicas) com concessão de autonomias que os nacionalistas nunca tinham sonhado ser possíveis? Percebe-se aonde Putin quer chegar. A desagregação da União Soviética é vista por ele como a consequência dessa estrutura de Repúblicas descentralizadas. Por isso ele considera que os bolcheviques traíram a ideia da Grande Rússia, não compreendendo ele próprio que a Revolução de 1917 é antes de mais uma revolta contra a Rússia dos Czares e daí a necessidade que os líderes da Revolução sentiram a necessidade de acolher representantes das diferentes etnias oprimidas por essa Rússia Czariana. Entendo que Milanovic está certo em sublinhar que o combate realizado sobretudo por Lenine ao chauvinismo da Grande Rússia se explica pela natureza originária da Revolução contra a opressão dos Czares.

Putin considera-se assim uma espécie de justiceiro apostado em recuperar esse sentimento da Grande Rússia e por isso não desdenha denunciar a traição bolchevique na destruição desse princípio. A denúncia serve para legitimar a narrativa da invasão da Ucrânia como servirá para o fazer em qualquer outra República que integrou no passado a URSS.

Apetece-me perguntar o que é que os Camaradas Jerónimo de Sousa e João Ferreira terão a dizer sobre a denúncia de Putin quanto à traição bolchevique e de Lenine em particular? Não seria altura de saírem da toca e a atreverem-se a criticar esta narrativa de Putin, destinada simplesmente a justificar a invasão?

As duas outras traições invocadas por Putin podem de certo modo ser consideradas uma consequência deste pecado original de destruição da ideia de império. O autocrata russo é de facto mais claro do que o pintam.

A traição das elites comunistas acontece com a profunda crise dos anos 80 da economia soviética. No seu discurso, Putin associa a influência desta crise aos apetites das elites locais de cada República, ligando por isso elites e nacionalismo, uma espécie de tempestade perfeita para o desmantelamento e desaparecimento da União Soviética. E Putin com todas as letras afirma que a criação dos estados independentes é o produto dos erros históricos e estratégicos dos líderes bolcheviques e da própria liderança do Partido Comunista da URSS.

E interrogo-me de novo: o que é que os Camaradas Jerónimo e João têm a dizer sobre isto?

A terceira ameaça é invocada com o Falcão Putin a fazer de Pomba. Tem elementos que vão desde a pretensa compaixão russa para com a Ucrânia, referindo subsídios e apoios em massa, vista grossa a pretensos roubos de gás realizados pelos Ucranianos, pagamento de dívidas contraídas no quadro da URSS, até à revelação de que Putin terá sondado Clinton sobre uma possível adesão da Rússia à NATO. Surpreendidos? Também fiquei. O resto é conhecido, invocação da promessa de que a NATO não se expandiria para leste e da retórica de que as novas adesões à NATO tenderiam a facilitar e não a perturbar as relações com a Rússia.

Milanovic tem carradas de razão quando sustenta que o discurso de Putin de 21 de fevereiro é uma peça crucial para compreender o que está implícito na ascensão do belicismo russo. Não tenho elementos para ajuizar qual o apoio efetivo que estas teses merecerão na sociedade russa. O que sabemos é que alguém que se coloque no caminho, obstaculizando a sua concretização acaba preso, envenenado ou simplesmente morto nas suas pretensões. Será que o restabelecimento da Grande Rússia imperial está nas cogitações do simples cidadão que não pertence ao centro oligárquico do poder e que enfrenta sobretudo no Inverno as consequências de uma economia débil, extrativa e rentista e incapaz de promover um desenvolvimento sustentado?

E não deixa de ser penoso confrontar a clareza deste discurso, eufórico e em delírio pessoal, talvez, com a retórica que vem do Ocidente, “o mundo vai exigir contas a Moscovo” (Biden) ou “não menospreze a reação da União Europeia”.

Só posso concluir com esta advertência: as restantes ex-Repúblicas soviéticas que se acautelem, pois a narrativa não esconde o desígnio, delirante talvez, do regresso à Grande Rússia.

E para os Ucranianos, depois de termos assassinado no aeroporto um dos seus, fica uma expressão de incómoda vergonha, sejam modestos em esperar o que quer que seja desta União.

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