domingo, 20 de fevereiro de 2022

COMPREENDER A CONFUSÃO

 


(Para um vulgar cidadão ocidental, para o qual a história não é uma novidade mas que nunca pôs os pés em terras do leste europeu, o máximo até onde fui foi a Hungria, a questão Rússia-Ucrânia é de uma grande complexidade. Não é fácil por isso fazer um esforço mínimo que seja para procurar alguma clareza e orientação de pensamento nesta guerra que vem e que não vem, que está à porta, mas que parece desafiar todas as inflexões e caprichos da dura contra-informação que está ao rubro por estes dias. O post de hoje é antes de mais uma tentativa interesseira de colocar ordem possível onde reina a confusão de pensamento, de procurar algumas ideias e princípios bases de reflexão que permitam seguir com alguma autonomia de espírito a vertigem da informação que nos chega. Apesar de que ando com a sensação estranha de que quanto mais leio sobre o assunto mais desinformado me considero…)

Começo com uma evidência que se instalou na minha memória política, fiel aquele princípio sensato de que à primeira é fácil ser enganado, à segunda e terceira ser enganado já pressupõe a nossa preguiça de pensamento.

Por estes dias aquilo a que assistimos é não a um violento confronto bélico de forças no terreno, mas antes a uma luta infernal pelo controlo da narrativa sobre o conflito russo-ucraniano. Ora, ninguém de boa fé mas com um mínimo de inteligência pode esquecer-se da perda de credibilidade que a narrativa que precedeu a invasão do Iraque trouxe à nossa perceção sobre a política ocidental. É, de facto, difícil engolir a tese do engano e da falsa informação e, passado o devido tempo, estou convencido que se tratou de uma narrativa que serviu os interesses de momento da guerra ou do desejo de a colocar no terreno.

Não faço a mínima ideia quanto a saber se estamos perante algo de semelhante em termos de narrativa. É que do lado de lá está uma estratégia, a de Putin, que permite todas as interpretações possíveis. E não podemos esquecer que tal como Gideon Rachman nos alerta no Financial Times (link aqui), nunca os governos ocidentais e particularmente os das principais potências tiveram perante si uma opinião pública tão pouco confiante sobre os respetivos governos. O cronista do Financial Times fala em taxas de confiança preocupantes, 46% na Alemanha, 44% no Reino Unido e 43% nos Estados Unidos. Haverá seguramente razões para esta falta de confiança particularmente devido às palhaçadas de Boris Johnson e aos ecos ainda vivos do trumpismo, já a taxa de confiança na Alemanha é difícil de interpretar.

A batalha da narrativa sobre a crise ucraniana é muito facilitada pela enorme confusão que se sucedeu à desagregação da ex-União Soviética e por um contexto ucraniano que tem todas as componentes para a interpretação da história conduzir à guerra ou, pelo menos, à instabilidade permanente. A Rússia já ocupou uma parcela de território, a Crimeia, cuja posse foi sempre disputada e sabemos ainda que há duas regiões na Ucrânia em que a população russa ou pró-russa é significativa e que podem rapidamente transformar-se à sua maneira em duas novas Crimeias. A eventual confirmação do independentismo dessas duas regiões e a sua validação e reconhecimento pelo Kremlin criaria o caldo ideal para um confronto mais aberto e generalizado e a pretensa unidade política do território da Ucrânia estaria irremediavelmente comprometida.

E o que de mais perturbador emerge de toda esta confusão é a existência em pleno território ucraniano de rastilhos ou combustíveis de confronto. Estou a falar de grupos armados independentistas e pró-russos nessas duas regiões, mas também de milícias armadas ucranianas que atacariam com facilidade as forças governamentais se alguma cedência gravosa for realizada por Zelensky aos Russos.

Com o seu rigor e sapiência habituais, que honram a sua escrita, Teresa de Sousa tem hoje no Público (link aqui) um artigo contra a corrente, são palavras da própria jornalista e não minhas, no qual se afirma que, apesar dos indícios dizerem o contrário, Putin já perdeu. O argumento de Teresa de Sousa é, segundo ela, a confirmação da unidade europeia perante o autoritarismo de Putin. O argumento é corajoso mas discutível e, independentemente das ameaças de retaliação económica serem reais e credíveis, a verdade é que os Europeus terão andado a prometer à Ucrânia coisas que não teriam condições para a curto-médio prazo garantir. A adesão à NATO é daquelas coisas que não pode passar para lá da barreira das boas intenções, já que equivaleria a uma mudança demasiado radical na geopolítica daquela zona e algo que os líderes europeus não terão medido bem os passos que exigiria. Mas numa coisa Teresa de Sousa tem razão. A unidade europeia acabou por ser surpreendente, sobretudo porque toda a gente percebeu que existia no território da União, neste caso da Alemanha, um Trojan Horse de Putin, nada mais nada menos do que o fornecimento de gás natural da Rússia à Alemanha. Aparentemente, o argumento de que esse Trojan Horse representaria uma força de pressão favorável a Putin não empurrou a Alemanha para posições dissonantes na União e até se poderá dizer que a ida a Moscovo do sucessor de Angela Merkel terá produzido um maior efeito de suspensão das hostilidades do que outras visitas.

Claro que todo o argumento racional encontra debilidades não entrando em linha de conta com a personalidade do próprio Putin. E nesta matéria a confusão é total, existindo mesmo uma certa paranoia sobre a racionalidade ou irresponsabilidade do líder russo. De interpretações que vão desde a invocação da sua racionalidade e uso da contrainformação para dominar a batalha da narrativa sobre o conflito, valorizando a sua experiência como espião, até às teses do seu isolamento em plena pandemia que o terão dissociado e afastado da realidade tenho lido de tudo. Mas o comportamento dos Russos nos últimos anos contribuiu em grande medida para a enorme suspeição que pesa sobre o Kremlin e sobre algumas das suas influências indiretas que têm na subversão das democracias europeias um dos seus principais focos de intervenção.

O que parece evidente é que de uma geração de complacência europeia para com os cenários de ausência de guerra, também produto da necessidade de esquecer a tragédia da Segunda Guerra Mundial que acabava quando praticamente eu nascia, iremos provavelmente para outras gerações que terão de repensar a segurança europeia e pensar a Guerra para continuar a ter a Paz. Oxalá Teresa de Sousa tenha razão e que possa emergir de toda esta situação, haja ou não invasão seletiva ou mais alargada da Ucrânia, uma União Europeia mais unida, pelo menos nestas matérias de segurança e que os Europeus compreendam que têm de pagar por isso. Porque esperar pela boa vontade dos Americanos pode sair-nos caro, sobretudo com a volatilidade que a situação política americana começa a apresentar.

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