(O artigo que Rui Tavares assina na revista do Expresso desta semana, dedicado ao provocatório tema de “Os Cem anos do Fim do Império Romano – e NÓS”, é uma peça fundamental para interpretar o mundo de hoje, ou melhor para perceber com que lentes o devemos compreender. É mais um fundamento para justificar o meu apreço pelo deputado do Livre e pela virtuosa associação cultura-política que ele protagoniza, com evidentes reflexos na qualidade do seu pensamento. E como a política portuguesa precisa de gente que deixe fertilizá-la com outras fontes de conhecimento! A questão do Império Romano do Ocidente e das razões da sua queda obscureceu o nosso pensamento, fazendo-nos esquecer que gente de outras paragens e credos o quiseram protagonizar, a ponto, como o refere Rui Tavares numa interpretação extensiva do tema, podermos dizer que a sua queda definitiva se concretiza apenas no início do século XX, mais propriamente em 1923, quando a República da Turquia, então laica, foi criada.)
Quando lia o estimulante artigo do Rui, ocorreu-me que a economia do desenvolvimento com que me identifico e dela fiz profissão e investigação só ganhou foros de autonomia quando precisamente rompeu com a tradição etnocêntrica ou ocidental-cêntrica que a caracterizava nos seus primórdios. Todos os comportamentos e situações de outros mundos e povos eram interpretados à luz dos valores e instituições ocidentais e foi necessário que um conjunto de pioneiros, em que se destacava um dos patronos deste blogue, Albert O. Hirschman, rompesse com essa incapacidade de compreender os outros à luz dos seus próprios contextos para devolver à economia do desenvolvimento a sua autonomia intelectual. Não por acaso, o rompimento de Hirschman com essa tradição etnocêntrica, à luz da qual nos projetávamos ilusoriamente para o centro do mundo, foi possível após duas grandes missões que ajudaram a descontextualizar todo o aparato científico com que Hirschman fizera a sua formação. Primeiro, esteve na Europa do pós-2ª Guerra Mundial a assessorar a aplicação do Plano Marshall, num contexto de destruição física, mas de permanência de uma cultura e de um sistema de valores. Segundo, esteve na Colômbia, onde tomou contacto com experiências e opções que, à primeira vista e à luz das normas ocidentais, lhe pareciam perspetivas al revès, mas que, após uma leitura aprofundada e desprendida das ideias feitas, compreendeu que eram perfeitamente racionais, conduzindo-o ao tão conhecido pensamento de “trespassing” que atravessa toda a sua obra.
O artigo histórico de Rui Tavares é de uma pertinência e atualidade notáveis para compreender os conflitos do mundo de hoje. A ideia do combate ao etnocentrismo e à pretensa e ilusória centralidade do mundo ocidental e dos seus valores não pode ser confundida, como o lembrava com graça e razão o saudoso Eduardo Prado Coelho, como se pedíssemos uma bolsa a uma instituição qualquer para investigar e compreender o mundo não ocidental e este nos agredisse invocando uma culpa histórica nossa na formação dos seus problemas e constrangimentos.
Construir uma perspetiva não etnocêntrica do mundo não significa abdicar dos valores em que acreditamos, embora saibamos que nunca como hoje, como o mostrou bem o também notável Martin Wolf que nos visitou recentemente, demonstrando como democracia e capitalismo não têm hoje um casamento feliz e sem conflitos, estejamos com sérias dificuldades em demonstrar a superioridade desses valores. Uma perspetiva não etnocêntrica ajuda-nos sim a contextualizar acontecimentos e racionalidades, a compreender melhor a raiz dos problemas e sobretudo a fundamentar melhor ajudas e intervenções para gerar acordos, negociação e objetivos de paz, por mais precária que ela se apresente depois.
E que melhor agradecimento poderia deixar ao Rui Tavares que citar aqui com todo o prazer o último parágrafo do seu belo texto (mas leiam o texto que vale a pena):
“(…) Para entender o mundo, é preciso vê-lo de um lado e do outro da história. Virado do avesso, esse mundo em que o Império Romano acabou só há 100 anos é aquele no qual, após a 1ª Guerra Mundial houve uma corrida ao reconhecimento como Estado-nação. Os perdedores dessa corrida – os arménios, os curdos, os judeus, os palestinianos – foram vítimas dos genocídios futuros e às vezes as vítimas das vítimas. De Nagorno-Karabakh a Gaza, esse mundo que é também dos ataques terroristas, dos crimes de guerra e das limpezas étnicas está mais ativo e intenso do que nunca.”
Nota complementar
No mesmo registo e tirando partido de um daqueles fins de tarde em que a chuva miudinha e intensa nos convida a ficar em casa, visualizei os dois primeiros episódios de uma série da Netflix que considero notável – O ALFAIATE. O choque entre a Turquia urbana e moderna e a Turquia rural e étnico-religiosa que tem feito prosperar o atavismo islâmico já me havia fascinado numa outra série que analisei também neste blogue. O mesmo acontecerá, pelo menos projetando estes dois primeiros episódios. Aliás, no meu modesto entender, na Turquia irão ser vividas as grandes questões do nosso tempo de mudança.
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