domingo, 12 de novembro de 2023

AS DUAS VISÕES DO MUNDO

 


(O artigo que Rui Tavares assina na revista do Expresso desta semana, dedicado ao provocatório tema de “Os Cem anos do Fim do Império Romano – e NÓS”, é uma peça fundamental para interpretar o mundo de hoje, ou melhor para perceber com que lentes o devemos compreender. É mais um fundamento para justificar o meu apreço pelo deputado do Livre e pela virtuosa associação cultura-política que ele protagoniza, com evidentes reflexos na qualidade do seu pensamento. E como a política portuguesa precisa de gente que deixe fertilizá-la com outras fontes de conhecimento! A questão do Império Romano do Ocidente e das razões da sua queda obscureceu o nosso pensamento, fazendo-nos esquecer que gente de outras paragens e credos o quiseram protagonizar, a ponto, como o refere Rui Tavares numa interpretação extensiva do tema, podermos dizer que a sua queda definitiva se concretiza apenas no início do século XX, mais propriamente em 1923, quando a República da Turquia, então laica, foi criada.)

Quando lia o estimulante artigo do Rui, ocorreu-me que a economia do desenvolvimento com que me identifico e dela fiz profissão e investigação só ganhou foros de autonomia quando precisamente rompeu com a tradição etnocêntrica ou ocidental-cêntrica que a caracterizava nos seus primórdios. Todos os comportamentos e situações de outros mundos e povos eram interpretados à luz dos valores e instituições ocidentais e foi necessário que um conjunto de pioneiros, em que se destacava um dos patronos deste blogue, Albert O. Hirschman, rompesse com essa incapacidade de compreender os outros à luz dos seus próprios contextos para devolver à economia do desenvolvimento a sua autonomia intelectual. Não por acaso, o rompimento de Hirschman com essa tradição etnocêntrica, à luz da qual nos projetávamos ilusoriamente para o centro do mundo, foi possível após duas grandes missões que ajudaram a descontextualizar todo o aparato científico com que Hirschman fizera a sua formação. Primeiro, esteve na Europa do pós-2ª Guerra Mundial a assessorar a aplicação do Plano Marshall, num contexto de destruição física, mas de permanência de uma cultura e de um sistema de valores. Segundo, esteve na Colômbia, onde tomou contacto com experiências e opções que, à primeira vista e à luz das normas ocidentais, lhe pareciam perspetivas al revès, mas que, após uma leitura aprofundada e desprendida das ideias feitas, compreendeu que eram perfeitamente racionais, conduzindo-o ao tão conhecido pensamento de “trespassing” que atravessa toda a sua obra.

O artigo histórico de Rui Tavares é de uma pertinência e atualidade notáveis para compreender os conflitos do mundo de hoje. A ideia do combate ao etnocentrismo e à pretensa e ilusória centralidade do mundo ocidental e dos seus valores não pode ser confundida, como o lembrava com graça e razão o saudoso Eduardo Prado Coelho, como se pedíssemos uma bolsa a uma instituição qualquer para investigar e compreender o mundo não ocidental e este nos agredisse invocando uma culpa histórica nossa na formação dos seus problemas e constrangimentos.

Construir uma perspetiva não etnocêntrica do mundo não significa abdicar dos valores em que acreditamos, embora saibamos que nunca como hoje, como o mostrou bem o também notável Martin Wolf que nos visitou recentemente, demonstrando como democracia e capitalismo não têm hoje um casamento feliz e sem conflitos, estejamos com sérias dificuldades em demonstrar a superioridade desses valores. Uma perspetiva não etnocêntrica ajuda-nos sim a contextualizar acontecimentos e racionalidades, a compreender melhor a raiz dos problemas e sobretudo a fundamentar melhor ajudas e intervenções para gerar acordos, negociação e objetivos de paz, por mais precária que ela se apresente depois.

E que melhor agradecimento poderia deixar ao Rui Tavares que citar aqui com todo o prazer o último parágrafo do seu belo texto (mas leiam o texto que vale a pena):

“(…) Para entender o mundo, é preciso vê-lo de um lado e do outro da história. Virado do avesso, esse mundo em que o Império Romano acabou só há 100 anos é aquele no qual, após a 1ª Guerra Mundial houve uma corrida ao reconhecimento como Estado-nação. Os perdedores dessa corrida – os arménios, os curdos, os judeus, os palestinianos – foram vítimas dos genocídios futuros e às vezes as vítimas das vítimas. De Nagorno-Karabakh a Gaza, esse mundo que é também dos ataques terroristas, dos crimes de guerra e das limpezas étnicas está mais ativo e intenso do que nunca.”

Nota complementar

No mesmo registo e tirando partido de um daqueles fins de tarde em que a chuva miudinha e intensa nos convida a ficar em casa, visualizei os dois primeiros episódios de uma série da Netflix que considero notável – O ALFAIATE. O choque entre a Turquia urbana e moderna e a Turquia rural e étnico-religiosa que tem feito prosperar o atavismo islâmico já me havia fascinado numa outra série que analisei também neste blogue. O mesmo acontecerá, pelo menos projetando estes dois primeiros episódios. Aliás, no meu modesto entender, na Turquia irão ser vividas as grandes questões do nosso tempo de mudança.

 

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