(O aparente tsunami político que o início da manhã de hoje nos trouxe com efeitos na demissão de António Costa, na detenção de um conjunto de personagens alguns dos quais próximos ou membros do corpo central de colaboradores e/ou amizades do Primeiro-Ministro e na colocação como arguidos de dois ministros do atual governo é em si, obviamente, um acontecimento importante, abrindo um novo ciclo político em Portugal cujos contornos não são ainda antecipáveis. Mas a compreensão do próprio processo está longe de estar assegurada pelos elementos até agora conhecidos, pelo que nessa perspetiva não os comentarei por agora. Porém, face aos contornos conhecidos e dada a natureza dos projetos que deram origem aos acontecimentos, é possível realizar uma reflexão sobre o que os acontecimentos representam de debilidade estrutural da economia e da sociedade portuguesa. A expressão que me vem à mente é a de maldição dos grandes projetos. Explico-me nos parágrafos subsequentes.)
A palavra maldição (curse) faz parte do léxico dos economistas do desenvolvimento, aplicando-se para caracterizar em linguagem de senso comum as armadilhas de desenvolvimento associadas a monoespecializações em recursos naturais, designadamente extrativos e por vezes também em formas agudas de especialização turística.
Nesta reflexão, não irei aplicá-la na perspetiva da economia do desenvolvimento, mas ensaiar a sua extensão à ciência política, para interpretar a essa luz os acontecimentos em torno do lítio e do hidrogénio em torno dos quais se desenrola o tsunami político do dia de hoje.
De facto, se fizermos uma incursão pelo processo histórico da democracia em Portugal e se formos mesmo ao período da falhada primavera política que se abriu com a saída de Salazar e a chegada de Marcelo Caetano ao poder, facilmente nos apercebemos que parece existir uma maldição dos grandes projetos em Portugal. Essa maldição assume variantes diversas, desde a não passagem do papel de alguns deles, o adiamento infindo das decisões políticas que os deveriam acionar, passando obviamente pelos processos de corrupção que deixaram marcas na sociedade portuguesa tudo isso constitui uma espécie de maldição. Mas nesta minha extensão para a ciência política deste conceito, o que pretendo é que por detrás dessa possível maldição está uma significativa incapacidade estrutural de levar a cabo grandes projetos. A falência nos anos 70 do projeto das indústrias básicas em Sines, a questão do TGV, a permanentemente adiada decisão do novo aeroporto, a ideia da PT como empresa global e agora, mais recentemente, as grandes apostas nas baterias e no lítio e no hidrogénio verde ou da cor que lhe pretendam atribuir são exemplos de ambição que se revelou grande demais para o passo possível. A corrupção, cultura de compadrio ou simplesmente jogo agudo de influências são manifestações em meu entender dessa incapacidade estrutural de conceber e concretizar grandes projetos.
O tema merecia estudo mais aprofundado e certamente os desenvolvimentos dos processos que conduziram ao tsunami de hoje irão trazer esclarecimentos a esta minha interrogação digamos intuitiva. A pequenez do País não necessariamente em termos territoriais ou mesmo demográficos, basta comparar-nos na União Europeia, mas antes de recursos e de clareza na gestão estratégica abate-se como se de uma maldição se tratasse. Mas tal como acontece na maldição dos recursos naturais, ela corresponde a mecanismos bem precisos que importa caracterizar para nos conhecermos melhor estruturalmente. E estou em crer que não apenas os malandros do costume padecem desta maldição. Também gente de boa vontade foi por ela sacrificada ao longo do tempo.
Veremos se os subsequentes dados sobre este processo trarão ou não evidência para enriquecer esta minha intuição, com alguma base teórica.
Notas complementares
Já depois de ter publicado o post, ocorreram-me duas notas adicionais que importa associar a este testemunho.
A primeira prende-se com os fundamentos teóricos da minha intuição. Bent Flyvbjerg, que me proporcionou notáveis referências para as minhas reflexões sobre o planeamento em geral, tem uma obra de 2003, Megaprojects and risk - an anatomy of ambition, que nos ajuda a compreender a deriva política que os megaprojetos tendem a provocar.
A segunda diz respeito a um outro exemplo de maldição dos grandes projetos. A própria justiça não é imune a essa propensão. Basta recordar o grande falhanço em que os megaprocessos judiciais se têm transformado. Uma boa aplicação da minha ideia.
Sem comentários:
Enviar um comentário