sexta-feira, 17 de novembro de 2023

JUDICIALISMO E POPULISMO

 

(Sem referenciais credíveis de interpretação sinto-me por vezes zonzo com toda esta algazarra política que nos cerca. Por isso, tenho andado às voltas com a procura de alguns fundamentos teóricos que me ajudem a construir uma barreira sólida para a desorientação. Tenho a intuição ainda não totalmente fundamentada de que o pleno entendimento da questão do populismo será uma matéria crucial em tudo isto, mas esse fenómeno é ele próprio bastante viscoso e transcende os limites do populismo, mais declaradamente económico, que a obra de Barry Eichengreen[1] me ajudou bastante a compreender, em torno dos valores do anti-elites, do autoritarismo e do nacionalismo anti-imigração. A minha intuição vai ao ponto de compreender que existe também a dimensão dos termos em que aquilo que Habermas designa de esfera pública e que surge profundamente alterada com a revolução das condições de comunicação e informação. A crise política e obviamente também judicial que vivemos constitui um laboratório por excelência para a discussão deste tema, onde estranhamente vemos passar pelos rodapés de informação seja a perturbação do Ministério Público, pelos vistos apostando tudo nos discos rígidos de Escária, seja a manifestação do pulsar dos atores políticos que começam a dividir-se sobre a postura a assumir perante justiça tão desengonçada. Continuo atento a qualquer contributo na esfera pública que me ajude a construir uma perspetiva mais coerente do nosso espanto em curso.

Não tenho um alinhamento perfeito com o pensamento de Daniel Oliveira, mas reconheço-lhe capacidade bastante acima do comentário político médio que circula por aí. Tem assinado textos ora mais felizes, ora mais ao lado de um pensamento coerente, mas a crónica que assina no Expresso deste fim de semana é das que vale a pena ser lida e acrescentada ao rol de contributos que importa digerir.

A crónica intitula-se “Facilitadores e Procuradores” e vejo talvez pela primeira vez uma perspetiva coerente entre as dimensões política e judicial de todo este aparato. Cito o parágrafo final da crónica:

“(…) Havendo semelhanças entre a cultura de informalidade de quem contrata o amigo do primeiro-ministro para ter acesso ao poder e quem usa os jornalistas para a condenação pública, há uma diferença essencial: não sendo a forma indiferente ao processo político, a justiça depende dela em absoluto. E quem constrói estes megaprocessos, impossíveis de chegar a bom porto, não procura a eficácia formal, mas o impacto social, em sua substituição. Ao fazer esta escolha, estes procuradores mostram descrer no sistema que juraram defender. Porque a justiça em que acreditam é incompatível com o Estado de Direito. Estão sintonizados com aquilo a que vulgarmente, com pouco rigor, chamamos populismo.”

E se acrescentarmos à crónica de DO a de AntónioGuerreiro no Ípsilon, centrada na precarização do jornalismo e na denúncia do estado deprimente em que esses mesmos precários são colocados com um microfone na mão em frente à casa de um governante qualquer em busca de um minuto de atenção, temos aqui dois elementos que podem ser estruturantes para a construção de uma visão mais alargada, mas ainda coerente, do populismo reinante. Uma justiça mais interessada no impacto social das suas investigações do que no aprofundamento coerente das mesmas, em linha com as exigências do Estado de Direito, casa obviamente na perfeição com o estado lastimoso da comunicação social, aturdida pela velocidade e adaptabilidade das redes sociais. A precarização do jornalismo pode, assim, ser entendida como a carne para canhão de toda esta adulteração da esfera pública.

E quando releio Habermas[2], compreendo como será estritamente necessário trabalhar a esfera pública para a fazer regressar aos bons princípios:

“(…) Especialmente com vista à estabilidade do sistema político, o coração normativo da constituição democrática deve ser ancorado na consciência cívica, ou seja, nas crenças implícitas dos próprios cidadãos. Não são os filósofos, mas a larga maioria dos cidadãos, que devem estar intuitivamente convictos dos princípios constitucionais.”

Decididamente a explorar em posts seguintes.



[1] The Populist Temptation – Economic Grievance and Political Reaction in the Modern Era. Oxford University Press, 2018.

[2] A New Structural Transformation of the Public Sphere and Deliberative Politics. Polity Press, 2023.

 

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