quarta-feira, 8 de novembro de 2023

O QUE DIZER DISTO TUDO?

 

                                                        (Jornal Público)

(À medida que vou elaborando novas reflexões sobre o que designei ontem de tsunami político, e que me mereceu no post de ontem uma avaliação da debilidade estrutural nacional de conceber e concretizar grandes projetos, é tempo de organizar os primeiros pensamentos sobre a espuma do acontecimento. Curiosamente, invocando o meu passado de escriba, veio-me à mente um texto que escrevi nos anos 80 para uma Conferência do CISEP-ISEG em Lisboa, sob a supervisão da saudosa Professora Manuela Silva, que se intitulava provocatoriamente “A degenerescência da base moral da economia portuguesa”. Recordo-me que na altura andava a ler a Teoria dos Sentimentos Morais de Adam Smith, sim, sem modéstia, devo ter sido dos primeiros na Universidade portuguesa a descobrir esta outra dimensão do pensamento de Smith, e um livro de Fred Hirsch sobre os limites sociais do capitalismo e decidi com essa inspiração ensaiar um olhar diferente sobre a economia portuguesa. Em meu entender, o que alegadamente se terá passado em torno dos grandes projetos do lítio e do hidrogénio e que dá origem à investigação judicial constitui um exemplo de degenerescência da base moral com que o interesse público é assumido na economia portuguesa. O que não deixa de ser surpreendente é que, cerca de quarenta anos depois, o tema da degenerescência da base moral, todo o capitalismo precisa de uma base moral como instrumento de autorregulação, continua vivo. Essa degenerescência aconteceu sob os nossos olhos, talvez a tenhamos perspetivado com indiferença, à medida que alguns profissionais especializados nessa matéria, foram assentando arraiais, desenhando uma teia de cumplicidades. Estes processos, quando se resolvem, tendem a sê-lo sob a forma de catarses mais ou menos alargadas e creio que teremos nos próximos tempos um exemplo desse tipo.)

 

António Costa talvez se tenha posto a jeito não cortando cerce algumas relações de proximidade tóxica e restringindo progressivamente a sua base de auscultação do dia a dia. Não se trata de condenação pela comunicação social, mas simplesmente de questões de confiança. O primeiro-Ministro inspira-me confiança mesmo depois da sua demissão, mas essa confiança não a poderei estender a personagens, figuras ou peças como Lacerda Machado ou Vítor Escária. Estas duas personagens foram organizando o seu curriculum de experiência de forma clara e sem margem para dúvidas, assente numa base moral bastante questionável de manejamento do interesse público, não constituindo para mim qualquer surpresa se a investigação judicial conduzir a resultados concretos que justifiquem o aparato.

Custa-me a crer que sendo esta evidência tão clara nas trajetórias profissionais deste calibre o Primeiro-Ministro não tenha compreendido a tempo que poderia ser utilizado para fins perversos em termos de defesa do interesse público.

E, num tom antecipadamente um pouco especulativo, não retiraria de cena a hipótese de António Costa ter protagonizado uma espécie de take 2 do pântano de António Guterres que levou então à sua retirada de cena. Ter-se-á o Primeiro-Ministro apercebido de que estava fora de tempo para cortar cerce a degenerescência em curso e que a desastrada nota das autoridades judiciais a revelar que iria ser investigado lhe oferecia a oportunidade para evitar maiores danos?

Fica a ideia de que em política a proximidade tóxica acaba por ser letal.

Será que o País aprenderá com esta evidência?

 

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