quinta-feira, 23 de novembro de 2023

E SE CONTINUÁSSEMOS, SEM PALAVRAS MANSAS, A FALAR DA TRANSIÇÃO ENERGÉTICA?

 


(O mundo está naqueles momentos particulares nos quais virando-nos para a frente, para trás ou para o lado, deparamos com fatores de preocupação e no plano político bastariam os acontecimentos recentes na Argentina e nos Países para adensar ainda mais as nuvens negras que pairam sobre a gente decente. Neste contexto conturbado é fácil perdermos de vista problemas como a transição energética e a emergência climática e nem com a multiplicação dos acontecimentos severos por todo o lado tem chegado para não deixar cair esse tema central da agenda mundial. Tudo isto acaba por possibilitar o domínio das palavras mansas, abertura aos negacionismos de toda a espécie, mesmo os mais estúpidos e grotescos e deslumbramento pelo avanço das renováveis, mas esquecendo que se trata de uma transição e mudança e não uma caminhada triunfal das renováveis favorecida pela descida dos preços dessa tecnologia. E nessa mudança as palavras mansas ajudam a ocultar o problema da indústria fóssil estar ou não a contribuir decisivamente para um outro paradigma energético. Por isso, a disseminação de informação dura e crua sobre os termos da transição é cada vez mais crucial para contrariar o adormecimento das consciências. )

 

Tenho sempre encontrado no Chartbook do economista e historiador Adam Tooze um companheiro fiel (que justifica o preço da assinatura) para o não adormecimento da minha consciência energética, fornecendo-me regularmente evidência e documentação credível para abandonar a fantasia das palavras mansas e seguir com algum rigor os meandros da tal malfadada transição (mudança) energética. É o caso da divulgação do Relatório da Agência Internacional de Energia que nos traz de facto uma visão bastante global dos termos efetivos em que essa mudança está a processar-se e sobretudo uma visão mais realista do que a indústria dos combustíveis fósseis não está a fazer ou das miragens em que tem assentado a sua fundamentação.

Por falar em números duros e crus, o Relatório afiança-nos que, em 2022, cerca de 97 milhões de barris por dia de petróleo e 4.150 mil milhões de metros cúbicos de gás natural foram consumidos, representando cerca de metade das emissões de gás com origens em fontes de energia. Como Adam Tooze o assinala, embora não devamos esperar de relatórios de agências que não vivem sem o apoio dos governos grandes e desabridos radicalismos, o relatório agora publicado sobe de tom em relação à responsabilidade da indústria de petróleo e gás natural em toda a debilidade da resposta projetada para a emergência climática.

Tooze alerta-nos para a necessidade de rever a nossa própria perspetiva sobre a indústria do petróleo e gás natural, que tendemos por vezes a associar aos gigantes petrolíferos. Segundo os dados do historiador americano, tais gigantes representam apenas cerca de 13% da produção e reservas de petróleo e gás natural, o que aponta para uma estrutura de quem é quem nesta indústria algo mais complexa do que essa visão sugeriria. Nesta estrutura, emergiu o que poderia designar-se de nacionalismo energético, com empresas nacionais a deterem cerca de 50% da produção de petróleo e gás e 60% das reservas mundiais, não ignorando ainda que uma relação complexa entre público e privado acontece neste domínio.

O discurso das renováveis e energias verdes tem passado ao lado deste universo em transformação, estimando-se que apenas 1% do investimento em energias limpas passe por estas bandas. É por isso incompreensível, e o Relatório da Agência de Energia Internacional assim o documenta, que a infraestrutura fóssil continue a justificar um investimento anual de 800 mil milhões de dólares.

O artigo de Tooze desenvolve criticamente alguns dos argumentos que os interesses fósseis têm elaborado para justificar investimentos desse calibre e um peso tão reduzido na produção de energias limpas. Queria aqui destacar o argumento dos investimentos em captura de carbono como um dos grandes exemplos da fantasia de argumentação para justificar o impossível e nesse capítulo o Relatório da Agência não deixa margens para dúvidas:

Se o consumo de petróleo e de gás natural evoluísse nos termos desejados pelas projeções, isso iria exigir o inconcebível número de 32 milhares de milhões de toneladas de carbono capturadas com armazenagem adequada até 2050, incluindo 23 milhões de milhões de toneladas por via de captação direta pelo ar para limitar o crescimento da temperatura a 1,5 graus centígrados. As tecnologias necessárias para essa captura de carbono exigiriam 26.000 terawatts (um terawatt equivale a 1.000.000.000.000 de watts) de horas de geração de eletricidade para operar em 2050, o que é superior à procura global de eletricidade em 2022. E isso exigiria, por sua vez, 3,5 milhões de milhões de dólares em investimentos anuais até meio do século, o que é algo de semelhante a todo o rendimento anual da indústria nos anos mais recentes.”

A captura de carbono parece ser, assim, a principal fantasia fóssil dos nossos tempos.

Para memória futura.

 

 

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