(É curioso como à medida que a comunicação social vai vertendo cá para fora informações a conta gotas sobre o processo ou processos que deram origem ao tsunami político objeto dos meus dois últimos posts, paradoxalmente sem que a Procuradora Geral da República nos transmita uma pequena nota que seja sobre o que está subjacente a tudo isto, vai sendo possível caracterizar melhor o ambiente de debate político instalado. Face à clarificação dos termos em função dos quais esse debate se orienta, é possível analisar esse debate e não o caso em si, porque para isso a informação vai escassear, estimo eu, ainda durante largo tempo. Analisando a profusão de linhas e tipos de comentário produzidos até ao momento, emergem em meu entender duas grandes linhas de debate. Uma diz respeito ao estranho paradoxo, segundo alguns, de que um parágrafo um pouco atamancado num comunicado das autoridades judiciais tenha sido suficiente para determinar a demissão de um Primeiro-ministro e abrir uma crise política cujos contornos não são por agora plenamente antecipáveis. Esse estranho paradoxo adquire nuances mais carregadas se trouxermos à colação as últimas declarações em cerimónia oficial do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e convém recordar que é este órgão que tem autoridade para declarar como válidas ou para eliminar escutas telefónicas de órgãos de poder. Uma outra linha de debate diz obviamente respeito ao modo como esta crise irá ser superada pelo Presidente da República ouvidos os partidos políticos e o Conselho de Estado. É sobre estas duas linhas de debate que versa o post de hoje.)
Começo por uma espécie de esclarecimento prévio. O facto de na minha vida já longa nunca ter tido a tentação ou decidido assumir funções públicas a um nível político superior não significa de modo algum que tenha qualquer preconceito ou desconfiança relativamente a quem as exerce. Além do mais, considero-me uma espécie de homem invisível para esta coisa dos convites da política e só uma vez tive sem qualquer dúvida de rejeitar um convite para funções desse tipo (para Secretário de Estado e não mais do que isso, esclareça-se), proveniente do Engº João Cravinho e ficou por aí felizmente a minha experiência. Mas esta minha vontade de ficar à margem da política não significa de todo que menospreze quem a assume. Tenho por isso uma conceção dos políticos como homens ou mulheres que não escapam aos erros e complexidades da mente humana, diria uma conceção bastante humanizada dos agentes políticos, respeitando bastante a sua sujeição permanente a um escrutínio cada vez mais impiedoso e apreciando sobretudo a sua capacidade de deixar que a sua vida deixe de ser comandada pelas suas próprias regras e opções, para ser comandada pelo timing político e pela determinação impiedosa da comunicação social. Não acredito, por isso, em políticos perfeccionistas e de estilo bacteriologicamente puro. E até gostaria que os nossos políticos gerissem melhor o seu tempo e frequentassem connosco as atividades da vida normal e lúdica que todos frequentamos. Claro que também reconheço que isso obrigaria a toda uma outra Escola de formação de políticos que não a via das estruturas partidárias que tem dado origem a decisores sem qualquer perspetiva de mundo e de vida, o que me assusta profundamente. Para mim o custo de oportunidade da política deveria ser zero, todo o político deveria ter uma profissão à qual, sem conflito de interesses, poderia regressar depois de em liberdade poder abandonar funções.
Face a este sistema de valoração, devo reconhecer que isso pesa na minha valoração positiva da presença de António Costa na democracia portuguesa, o que não significa de todo abdicar da consciência crítica para analisar o seu trabalho. E várias vezes aqui expressei essa minha consciência crítica, sobretudo em matérias que correspondiam melhor ao meu conhecimento e experiência académica e sobretudo profissional. E, num assunto que me tem causado algumas, não direi inimizades, mas talvez mais desconfianças, António Costa interpretou, em meu entender, melhor do que ninguém a construção da geringonça, que eu considero a formulação política que deveria ser efetivamente implementada na sociedade portuguesa do pós-Troika. As alianças políticas não se definem em abstrato ou simplesmente por alinhamento ideológico. A minha passagem pelo marxismo ensinou-me a compreender as situações concretas em que as alianças políticas devem ser arquitetadas. Não tenho dúvidas de que aquela foi a solução adequada para o país e só António Costa a poderia arquitetar. Isto não significa, como é óbvio, que a solução seja necessariamente repetível e que a aconselhe.
Consumado este introito, vamos à primeira linha de debate, o tal paradoxo de um simples parágrafo não totalmente explicado ter gerado o “obviamente demito-me”. Esse paradoxo resulta da coerência que o Primeiro-Ministro teve de manter face à sua maneira de ver a Justiça. Mas direi, sem qualquer ilusão, que muito provavelmente António Costa não teria outra saída. As perceções políticas que ele deixou criar não só pela gestão que considero ruinosa das suas relações de proximidade estendidas para a política, mas também por apostas políticas que ele considerou de consciência, como por exemplo a aposta em João Galamba e a sua manutenção como Ministro das Infraestruturas, seriam sempre letais quando alguma peça do puzzle não estivesse alinhada. E, como o referi no post de ontem, aquelas relações de proximidade cortavam a respiração a qualquer pessoa de bom senso mediano. Por isso, talvez seja paradoxal o que aconteceu, mas a preservação da sanidade democrática assim o justificaria. Outra coisa é deixar de acompanhar com olhar crítico a ação do Ministério Público.
Quanto à segunda linha do debate ela é menos interessante, pois em meu entender o Presidente da República muito dificilmente deixará de convocar eleições antecipadas, dissolvendo a Assembleia da República após a aprovação do Orçamento de Estado para 2004, já que o maior partido de oposição não se opôs a essa possibilidade. Já a peregrina ideia de que a marcação das eleições poderia dilatar-se no tempo, aproximando-se ou coexistindo com as Europeias, considero-a totalmente desajustada. O argumento de que o País deveria parar praticamente um ano para pensar parece-me peregrino e não sou capaz de imaginar a inconsequência da atividade governativa, mesmo que de gestão se tratasse, em tal contexto. Penso pois que Marcelo será desta vez sensato em propor eleições para fevereiro ou março. Em democracia não podemos ter medo de eleições, até porque o povo português tem-se revelado sensato em todas as decisões que tomou. E, em função das novas condições concretas que as eleições determinarem, aqui estaremos para analisar os contornos da saída entretanto operada.
Quanto aos rumos de liderança que o PS deverá seguir para se apresentar condignamente ao eleitorado é cedo para me debruçar sobre isso. Mas a memória das minhas passagens por este blogue é clara na evidência de que não morro de amores por uma candidatura à liderança de Pedro Nuno Santos. A seu tempo explicarei porquê.
Sem comentários:
Enviar um comentário