segunda-feira, 20 de novembro de 2023

EL TANGO DE LO CAMBIO

 

(A Polónia dera-nos alguma esperança. Nos EUA, as nuvens são negras, apesar de em algumas intercalares a fratura do aborto ter salvo por agora os Democratas. A vitória da extrema-direita anárquica, visceral e brandindo o fim da decadência argentina venceu claramente na segunda volta o candidato do establishment, do faz que faz mas não faz, e inaugura na América Latina, e a Argentina não é um país qualquer, o fantasma do regresso da extrema-direita ao poder sob a forma de um anarquismo libertário e liberalizante no extremo do possível instala-se. Uma vez mais se repete o fantasma da democracia abrir caminho e passadeira vermelha ao populismo mais grotesco, mostrando que já não são necessários golpes de Estado para a extrema-direita se instalar na governação. O meu título “El tango de lo cambio” glosa o que habitualmente se consagra, para dançar o tango são precisos dois. Neste caso, um populista grotesco e uma população aparentemente desejosa de mudança. Porque se é verdade que Milei é alguém e sanguinariamente anárquico, é óbvio que nos 56% dos seus apoiantes está gente que não defende tais valores e votou apenas “en el cambio” ou, pelo menos, na ilusão de que ele é possível. E, de facto, não poderia haver candidato mais apetrechado para justificar o desejo de mudança que um político a exercer o poder e que ilustrava fielmente o atavismo a que a Argentina politicamente chegara nos últimos anos. Mas fica demonstrado com a mais clara evidência que a democracia pode acolher em eleições livres a sua própria destruição. Responsabilidade histórica dos eleitores? Sim, sem dúvida. Mas também de quem navegou na inércia e na imobilidade.)

 

A Argentina e o Brasil são exemplos, à sua maneira e diferenças, de países que viveram no pós 2ª guerra mundial processos políticos e económicos, baseados em modelos de substituição de importações e de tentativa de vingar no mercado interno que se prolongarem com todas as distorções possíveis para lá do justificável, baseados em populismos potencialmente libertadores como o Peronismo, na Argentina, e o Getulismo no Brasil. Tais regimes deixaram marcas difíceis de apagar, ambos passaram pela violência repressiva de ditaduras militares, deram origem a governos progressistas bloqueados por origens diversas e, recentemente, foram objeto de populismos autoritários e tresloucados (Bolsonaro no Brasil) e agora Milei na Argentina.

Tais regimes e a polarização que geraram acabaram por criar inércias políticas, largamente corruptas, de claríssima viciação do interesse público, das quais o governo de Lula no Brasil é a rara tentativa progressista de contornar pela esquerda esse flagelo (veremos se funciona ou se fica presa no atoleiro). A saída em curso na Argentina pode ser trágica, pelo que pode representar de combustível para outras incursões de extrema-direita pela América Latina e não só. Na minha previsão, a base social de pobreza que votou iludida pelo “cambio” em Milei será provavelmente quem irá amargar esta experiência laboratorial da extrema-direita. Isto porque a história sempre nos disse que privatizações selvagens servirão apenas para agudizar os gaps penalizadores dos que agora se revoltam pelo voto.

 

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