domingo, 5 de novembro de 2023

QUESTÕES DE MORAL E DE POLÍTICA

 


(O destempero e incontinência verbais do Presidente Marcelo parecem não ter fim e dá a estranha impressão que se agravam à medida que o fim do mandato presidencial se projeta no horizonte. Uma coisa é esse destempero e incontinência se limitarem ao domínio do circunstancial aleatório, como foi o caso do decote, outra coisa bem diferente é entrar porta adentro pela diplomacia, como foi o caso das suas infelizes declarações com o representante da autoridade palestina. Marcelo parece não ter ainda percebido que o contexto de verbalização de uma Presidência próxima dos Portugueses não é hoje o mesmo de quando ele iniciou esse mandato. E tem havido a estranha regularidade das declarações de esclarecimento do que correu mal ou menos bem trazerem ainda mais achas para a fogueira. Fazer de virgem ofendida com o estilo de personalidade que Marcelo tem tende a piorar a situação como aliás o temos observado. José Pacheco Pereira que, valha a verdade, foi o primeiro a sentir e a expressar incomodidade com a incontinência verbal do Presidente, ofereceu-nos este fim de semana um lúcido, e segundo ele contrariado, testemunho sobre o conflito entre Israel e o Hamas. A sua divisão entre o plano moral e o plano político é fundamental para organizar de modo mais consistente o debate e escapar à demoníaca polarização em que esta matéria se transformou, do tipo estás ou não estás com Israel.)

A tese de JPP, com a qual alinho, é a de que no plano moral tanto são condenáveis as atrocidades do Hamas em Israel como a desproporcionada e impiedosa agressão de Israel ao território de Gaza, não importa se conduzida para eliminar o Hamas. É neste plano que, ao contrário do que os ultras israelitas pensam, Israel perderá a guerra da opinião pública e, perdendo-a, a segurança israelita e do ocidente que a apoia não estarão nunca asseguradas, pois existirá sempre alguém que se sentirá revoltado com os custos desumanos que a desproporcionada reação das forças israelitas provocará entre a população palestina, incluindo aqui o nítido agravamento das condições de vida dos palestinos na Cijordânia.

Mas a tese de JPP é a de que, no plano político, já não se verifica aquela equivalência moral. Do ponto de vista político, tal como afirma JPP, os atos do Hamas e de Israel não se equivalem. E a razão está no contexto diferenciado dos dois lados da contenda em termos de afirmação dos valores da liberdade e da democracia. É verdade que, dirão alguns, que de democrático o atual governo israelita tem muito pouco. Mas a sociedade israelita não pode ser confundida com a excrecência democrática de Nethanyau e seus pares. Uma larga faixa dessa sociedade, por mais inconsequente que tenha sido em não travar a ascensão de Nethanyau, partilha os nossos valores e modo de organização. Do mesmo erro de perspetiva padece a incontinência de Marcelo em relação ao representante da Autoridade da Palestina. Pese embora os seus pecados de corrupção, a AP reconhece o Estado de Israel e não pode por isso ser confundida com o radicalismo terrorista de uma organização que precisa da violência de Israel para se autojustificar enquanto força política.

E é no plano político, não esquecendo obviamente a condenação moral, que as coisas têm de ser recolocadas, a começar pela viabilização e criação de condições de operacionalização do modelo dos dois Estados. A questão fundamental, que vejo raramente ser discutida, é a da necessidade de contornar a não contiguidade espacial entre a faixa de Gaza e o território da Cijordânia. Como é possível um Estado Palestiniano vingar com dois territórios separados geograficamente e com Israel implantado entre eles? Imagino que a distância mais curta entre os dois territórios que integrariam o Estado da Palestina não é coisa inferior a 90 quilómetros. Como assegurar então a contiguidade? Ignorar esta questão num eventual regresso (e tudo indica que única solução possível, pois a tese dos três Estados é cada vez mais inverosímil) ao modelo dos dois Estados pode conduzir a um total fracasso.

Estive a reler um artigo de maio/junho de 2003 deMartin Indyk para a Foreign Affairs (“A Trusteeship for Palestine?”) no qual se fazia referência a uma abordagem inspirada pelas experiências de Timor Leste e do Kosovo para a construção de um Estado Palestino democrático. A proposta consistia em associar a “trusteeship”a praticamente todo o território da faixa de Gaza e a cerca de 50-60% da Cijordânia, possibilitando que a negociação conduzisse à definição dos limites efetivos do Estado Palestiniano, enquanto se preparavam as bases institucionais para o novo estado democrático tomar forma. Cerca de vinte anos depois, num território em que a soberania legal continua a pertencer às Nações Unidas que o receberam do Reino Unido, esta proposta parece hoje totalmente inviabilizada, não só pela ocupação israelita de grande parte da Cijordânia, pelo colapso da Autoridade Nacional Palestiniana e pela continuada rejeição de Israel em aceitar as Nações Unidas como mediadoras do conflito. O artigo de Indyk já fazia referência à necessidade dos EUA substituírem as Nações Unidas na mediação do conflito e na liderança da “trusteeship”.

E curiosamente também nesse artigo se ignorava o problema da não contiguidade territorial de Gaza e da Cijordânia e os problemas que isso suscita do ponto de vista da viabilização de um estado independente.

O que parece dramático neste contexto é que, apesar de todas as fragilidades do modelo de dois Estados e da “trusteeship” proposta para criar condições à sua viabilização, essa solução ainda é preferível seja à presença exterminadora dos israelitas num território que não lhes pertence, seja à transformação deste território em nova fonte incubação de forças terroristas. Porque à medida que a violência israelita avançar, mesmo com a pressão limitadora dos EUA, e for cada vez mais evidente a incapacidade da Autoridade Nacional Palestinian a para controlar a situação, o radicalismo do Hamas ou de quem venha a ocupar o seu lugar continuará a ganhar pontos como única força no terreno suscetível de contrariar a referida presença israelita.

Se isto não é um nó cego …

 

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