quinta-feira, 30 de novembro de 2023

ÀS VOLTAS COM A INTERDISCIPLINARIDADE

 


(Fui gentilmente convidado para participar na Conferência “A Interdisciplinaridade e o futuro da Universidade”, inserida na comemoração dos 70 anos da Faculdade de Economia do Porto, comentando juntamente com Miguel Pestana de Vasconcelos, Juiz Conselheiro do Tribunal de Contas, as intervenções centrais de Augusto Santos Silva e da Professora Olga Pombo. Seguramente uma oportunidade que muito agradeço de mais um regresso afetivo aquele universo da FEP, do qual ainda me recordo em sonhos furtivos de noites mais oníricas do que o habitual. Mas também oportunidade de reler coisas que marcaram a minha passagem pelos desafios da interdisciplinaridade e também de ler coisas novas das quais destaco alguns escritos da Professora Olga Pombo cuja clareza e profundidade me impressionaram ao ponto de a considerar como uma das autoras que me trouxeram mais valor acrescentado nesta matéria. Vou procurar neste post anotar alguns dos enfoques que estão a orientar a preparação do meu comentário, tarefa sempre ingrata pois não tenho informação sobre o que os dois palestrantes centrais tencionarão apresentar ao auditório. Se em relação a Augusto Santos Silva posso talvez antecipar o conteúdo possível da sua intervenção, já em relação à Professora Olga Pombo serão certamente os seus escritos a minha fonte de inspiração.)

 

A minha relação com a interdisciplinaridade é ambivalente. Há uma dimensão académica e de investigação e uma outra inerente à minha atividade profissional, leia-se atividades de planeamento e de avaliação de políticas públicas. Vou tentar neste post aflorar cada uma destas dimensões e será assim que irei organizar os curtos dez minutos concedidos aos dois comentadores.

 No que respeita à minha vida académica, quando a economia do desenvolvimento me começou a interessar como disciplina principal os caminhos da interdisciplinaridade surgiram-me de forma clara compreendendo bem cedo que a disciplina precisava como pão para a boca de uma rotura com os princípios do etnocentrismo ocidental que dominavam a disciplina na sequência dos tempos coloniais. A ideia de que as economias assentes noutras bases culturais tinham de ser compreendidas à luz do “nosso” sistema de valores e dos “nossos” padrões de racionalidade económica tinham conduzido a interpretações viciadas, senão mesmo perversas, do subdesenvolvimento e das diferentes formas através das quais ele se manifesta. E impediam também de compreender que o subdesenvolvimento poderia apresentar uma dinâmica de reprodução, ainda que se revelasse sob padrões de estagnação e de inércia económica.

Nesse contexto de rotura, a revelação da exigência da interdisciplinaridade foi relativamente simples. Afinal, para compreender os diferentes contextos sociais, culturais e políticos em que a racionalidade do subdesenvolvimento era construída, a economia já não se bastava a si própria e precisava de dialogar construtivamente, compreender e deixar-se contaminar por outras ciências sociais, como a história, a sociologia, a ciência política e mesmo a antropologia.

Compreendi então que a interdisciplinaridade não poderia limitar-se a uma ideia de diversidade disciplinar ou curricular ou uma simples estratégia pedagógica. Como a Professora Olga Pombo formula com grande pertinência e acuidade, a “interdisciplinaridade é uma determinação cognitiva do nosso tempo. Uma prática de articulação de conhecimento, um diálogo interdisciplinar, uma fertilização cruzada em função das exigências de conhecimento que a compreensão da situação histórica concreta exige, ao serviço de uma ciência entendida como um conhecimento que cresce:

“O espaço próprio de uma disciplina é interferido pelas outras disciplinas para produzir conhecimento”.

Foi nesse élan de compreender a interdisciplinaridade como uma etapa da evolução da ciência, que Olga Pombo chama de ciência em modelo de rede, que me levou a reler Adam Smith e a compreender como o conceito de divisão do trabalho pode ser estendido à produção de conhecimento científico. “Relier les connaissances”, reivindicava Edgar Morin na sua tentativa de construir um pensamento sobre a complexidade. Adam Smith, curiosamente, entendia que só os filósofos, não submetidos à especialização ou padronização de tarefas, seriam capazes de proporcionar uma perspetiva de conjunto. Mas para Smith, recordemo-lo, a filosofia era a ciência que tinha por objeto o estabelecimento de conexões que integram as diferentes manifestações da natureza. Numa dialética que encantava Marx, Smith defendia que como resultado da divisão do trabalho, a criatividade da sociedade como um todo aumentava, enquanto a dos trabalhadores indiferenciados diminuía acentuadamente (o eterno tema da estupidificação das tarefas repetitivas).

O conhecimento científico tem ele próprio o seu processo de divisão do trabalho, conduzindo a formas de investigação e conhecimento cada vez mais especializadas, mas existe a necessidade permanente de “relier les connaissances”. Em Smith, otimisticamente, era entre a gente mais abastada e distante da divisão do trabalho cada vez mais aprofundada que emergiriam os tais filósofos das conexões entre as diferentes manifestações da natureza.

Por isso, na minha perspetiva, é a interdisciplinaridade em vários campos da ciência que proporciona essa racionalidade de síntese ou de diálogo cruzado entre as diferentes disciplinas. Por outras palavras, a interdisciplinaridade acaba por ser uma forma específica de cooperação de recursos.

Na outra frente de revelação da interdisciplinaridade, com destaque para as atividades de planeamento territorial, setorial e organizacional em que me tenho envolvido, a procura da interdisciplinaridade é de outra natureza. Ela é um instrumento de abordagem a um objeto de intervenção. Trata-se de integração disciplinar focada na ação.

Sem querer transformar este post em algo de muito pesado, foi sobretudo importante compreender que o planeamento pode ser objeto de visitação por parte de diferentes abordagens: a abordagem mais racional em que o pensamento científico é o elemento determinante de organização e validação, a abordagem mais técnica em que os elementos da prática da experimentação e do “learning-by-doing” são um elemento essencial e a abordagem em que o planeamento considera os sistemas de valores. Nesta última abordagem, a interdisciplinaridade obrigou-me a regressar a conceitos como a fronésis ou sabedoria prática que Aristóteles nos deixou e por essa via a mergulhar (operação nada fácil) em alguns contributos de Foucault. Todos os dias na nossa atividade de planeamento somos confrontados com a necessidade de integração disciplinar e de organização do trabalho para proporcionar boas condições à cooperação entre recursos (neste caso entre valências técnicas e disciplinares e obviamente entre as pessoas que transportam consigo essas valências.

Em resumo, será em torno destas notas de orientação pessoal que organizarei o meu comentário. Embora esteja a correr riscos. Afinal, estou a publicitar um comentário sem conhecer exatamente o que os palestrantes centrais irão dizer.

Nota final

Em tempo de fim de semana alargado, com os netos de Lisboa cá pelo Norte, será mais tempo de acarinhar do que blogar. Por isso, é bem provável que, nos próximos dias, a minha escrita seja mais rarefeita e escassa. Uma boa e justificada causa.

 

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