sábado, 18 de novembro de 2023

SINES 4.0

 

Volto à minha mania de propor tratos aos meus leitores e concidadãos: vamos mesmo deixar de dar crédito ao que nos dizem políticos relativamente ignorantes quando pretendem impressionar os seus potenciais eleitores ou, às vezes também, quando repetem em declarações públicas as coisas mais estapafúrdias que lhes são impingidas por empresários sabidolas, responsáveis desinformados e assessores demasiado diligentes?

 

O “Expresso” de ontem abordou de dois modos desiguais mas igualmente pertinentes o mais recente destes tristes casos: o do chamado “mega datacenter” de Sines anunciado por Costa, em abril de 2021, como o “maior investimento direto estrangeiro das últimas décadas” (3,5 mil milhões de euros e criação de 1200 empregos qualificados até 2025) ― acrescentando, ainda, que o concelho em presença iria ser “um campeão da produção de hidrogénio verde em toda a Europa” ―, com o secretário de Estado de então (Eurico Brilhante Dias) a reforçar a ideia ao falar do “maior investimento estrangeiro captado pelo país desde a Autoeuropa”. Santo marketing político feito de propaganda da banha da cobra!


(João Fazenda, https://expresso.pt)

 

Por uma banda, o diretor João Vieira Pereira, na sua coluna da segunda página, escreveu o seguinte parágrafo, que fala por si na sua cristalina lucidez: “Só podemos sentir vergonha quando o poder político se subjuga a um data center, vendido como transformador da economia mas que não passa de um armazém para albergar computadores, que consomem quantidades enormes de energia e água para arrefecimento, de forma a serem alugados a grandes corporações internacionais. Apenas mais um projeto imobiliário para gerar rendas perpétuas a investidores estrangeiros que funcionam como extratores de riqueza, criando poucos postos de trabalho e quase nenhum valor acrescentado.”

 

Por outra banda, na última página da “Revista”, Ricardo Araújo Pereira recorre à sua genialidade irónica para nos trazer, afinal, a mesma inquietação: “O que é, ao certo, um data center? Para que serve? Porque é que tem um nome em estrangeiro? Ao que pude apurar, um data center é, em traços gerais, um barracão que alberga uma grande quantidade de cablagem. A cablagem chega de vários pontos do globo, concentra-se no data center, e daí parte para vários outros pontos do globo. O data center é, por isso, um interposto de transmissão de dados. Um coscuvilheiro cibernético que leva e traz informação. Mas é um barracão que, ao que parece, iria ser decisivo para Portugal. As importantes cablagens ocupariam, na imaginação nacional, o lugar que já foi das caravelas, das especiarias orientais, do ouro brasileiro, do dinheiro da União Europeia e do computador Magalhães. Por isso, a designação ‘barracão de cablagens’ seria indigna. Mesmo a expressão portuguesa ‘centro de dados’ ficaria aquém, em termos de pompa, da importância do barracão. Por isso, optou-se por ‘data center’. Creio que ficámos a perder. É improvável que seja preciso contornar leis para construir um barracão. Mas edificar um data center é uma atividade evidentemente complexa. Os barracões avançam sem dificuldade, como sabemos se dermos um passeio em várias zonas do país. Mas a construção de um data center decorre noutro plano de realidade, em que as coisas têm nomes de prestígio, em inglês, e por isso mesmo torna inevitável o recurso a connections. Creio que foi isso que deu shit.”

 

Em suma: estas décadas de presença europeia têm sido fartas de palavras bonitas, modas de ocasião (quase sempre com escasso sentido ou aplicabilidade à nossa realidade, que queremos sempre transformar rapidamente na melhor do mundo e arredores) e novos-riquismos tão enganosos quanto irritantes. Com Costa e Marcelo (quem não se lembra das figuras quase ridículas que os vimos fazer em sessões de um Web Summit que nos e os iria levar à glória eterna?), como antes com Sócrates, Santana e Durão (para só referir os mais permeáveis), a prestarem-se a vir a terreiro para pronunciarem com uma quase incontida alegria que o rei, longe de ir nu ou mal vestido, nos vai repentinamente surgir coberto de novas e irrecusáveis camadas de ouro verdadeiro. Menos, por favor!

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