segunda-feira, 6 de novembro de 2023

AS VIAS SINUOSAS DE UMA INVESTIDURA

 

(Já por repetidas vezes deixei claro neste blogue a minha incomodidade com a possível investidura de Pedro Sánchez para liderar o novo governo de Espanha, não porque desvalorize o talento negocial de Sánchez para se manter à tona do momento político, mas principalmente devido às condições que foi necessário reunir para assegurar a colaboração na votação das forças regionalistas e nacionalistas, com destaque para as formações catalãs da Esquerra Republicana e do Junts per Catalunya de Puigdemont, sobretudo desta última.Durante largo tempo, Sánchez conseguiu iludir a opinião pública espanhola não centrando as negociações no tema da amnistia e deixando que fogachos como a questão das línguas da nação espanhola na sua representação exterior, o aprofundamento das autonomias e algumas concessões em termos de algo parecido com perdões de dívida ocupassem temporariamente o palco mediático. Mas só alguém muito distraído ignoraria que a questão da amnistia era central e que o diga o exilado ou em fuga Puigdemont, a contas com o rosário de penas do “procès”. E, numa Espanha ao rubro de polarização e violência verbal, claro que na parte final do período constitucionalmente previsto para se completar ou inviabilizar a investidura, a questão da amnistia teria de irromper com toda a sua força de significantes, erguendo barricadas e promovendo manifestações de toda a ordem e feitio. A magia em política pode resultar por algum tempo, mas está para nascer o Houdini da política.)

Em tempo de guerra não se limpam armas e isso terá percebido o PP de Feijoo que, abandonando o seu estatuto tão preservado de homem de Estado moderado e respeitador das normas, se lança numa cruzada de manifestações por toda a Espanha, ocupando as praças centrais de 52 capitais de província para denunciar o que o PP considera ser "el mayor ataque perpetrado al Estado de derecho y a la igualdad de los españoles”. O objetivo claro de toda esta ofensiva consiste em contrapor ao tão próximo acordo negocial vital para a investidura um ambiente de rua que marca uma vibrante denúncia da eventual amnésia histórica e “espanholista” que a amnistia representaria.

A confusão existente é grande sobre o alcance da amnistia que Sánchez está a negociar com a Esquerra Republicana (que estão concluídas) e com o Junts de Puigdemont que estão na fase final e que à data em que escrevo não é ainda seguro que sejam concluídas. A tese dominante é que a amnistia desjudicializa o chamado “procès” catalão, que deu origem a condenações e a prisões das lideranças que não se escaparam como Puigdemont para o estrangeiro, o que só por si abala o poder judicial. Na verdade, a grande maioria dos constitucionalistas e homens de direito espanhóis contrapõe ao argumento da convivência e perdão entre os espanhóis o da quebra de dois grandes princípios - o monopólio do poder de punir e o da igualdade de aplicação da lei. Veja-se como exemplo o testemunho de Francisco Javier Álvarez García, catedrático de Direito Penal na Universidade Carlos III.

Claro que para apimentar a polarização, acaba também de sair um manifesto de cerca de 200 personalidadesda justiça, com destaque para o intrépido Juiz Garzón, apoiando do ponto de vista jurídico e constitucional a amnistia.

Para complicar este já denso e apertado lio, a técnica de negociação imposta por Puigdemont tem consistido em fazer associar à amnistia delitos que só numa interpretação muito lata e conveniente poderão ser considerados delitos gerados pelo procès catalão. Numa tentativa desesperada de salvar da justiça todos os seus colaboradores, Puigdemont está a forçar a barra incluindo na amnistia delitos de mero compadrio e corrupção. Esta tática bizarra e oportunista tem o condão de mais acirrar os ânimos contra a amnistia do procès e coloca Sánchez perante um cutelo de contornos impensáveis, podendo ser o entrave final a um acordo negocial final.

E como em Espanha há sempre algo que nos escapa, por estes dias a justiça espanhola resolveu lançar a sua própria acha para a fogueira. Segundo o El País, um magistrado da Audiencia Nacional, Manuel García-Castellóno de seu nome, com base num relatório da Guarda Civil, resolveu citar a juízo, o próprio Puigdemont e a Secretária Geral da Esquerra Republicana Marta Rovira, fugida na Suiça. O proceso designa-se estranhamente de Tsunami Democràtic e abrange as consequências das manifestações que se registaram na Catalunha na sequência da publicação da sentença que condenou os líderes do “procès” en outubro de 2019. Um verdadeiro mimo de xadrez político-judicial (e como longe está em Espanha o princípio de António Costa de “À política o que é da política e à justiça o que é da justiça”.

Last but not the least, o eventual acordo e a amnistia vistos pelo independentismo acirram por sua vez os ânimos. Numa entrevista ao El Español, o antigo porta-voz parlamentar da Esquerra Republicana, Joan Tardá, uma espécie de mestre espiritual do independentismo, não hesita em considerar que nas contradições do presente “o acordo com Pedro Sánchez deve ser entendido como um passo em frente na direção da independência, radicando o êxito segundo este filólogo e professor do ensino secundário no novo cenário que está lançado – uma mesa em que o PSOE já não vetará as conversações sobre uma consulta sobre a autodeterminação da Catalunha”.

Este é o ambiente fervilhante que domina a situação política em Espanha.

Valerá tudo isto uma investidura? Tenho sérias dúvidas de que o ambiente de guerrilha política em que a Espanha irá mergulhar se a investidura for confirmada com todo este enquadramento seja favorável ao PSOE no médio-longo prazo, para já a poucos meses de umas eleições europeias. Mas para os mestres do taticismo, e Sánchez é um deles, esse argumento não conta.

Para este pobre escriba, mais próximo da estratégia do que da tática, e mesmo não ignorando que uma sucessão adequada e hábil de táticas pode representar um padrão de estratégia, tudo isto é de difícil aceitação.

Mas de escribas como eu não se faz o rumo da política.

Nota complementar (07.11.2023 - 09.30)

 Se a situação já estava confusa, acrescentem por favor a posição da Igreja espanhola que, dividida entre as suas hostes catalãs e espanholistas e acossada pela questão dos abusos de menores, tomou também posição contra o processo de amnistia. O lio perfeito.

 

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