sexta-feira, 10 de novembro de 2023

O ACORDO PSOE-JUNTS

 


(Nunca imaginei que os sinuosos acordos que o PSOE tem vindo a realizar com partidos regionalistas e independentistas para garantir a investidura de Pedro Sánchez, cujos riscos foram por mim analisados em posts anteriores, gerassem um clima de violência e de intimidação como aquele que foi registado em frente às sedes do PSOE, especialmente em Madrid. O clima de delírio verbal e de ocupação violenta das calles que o VOX e o PP de Feijoo têm destilado por estes dias mostra bem o estado a que chegou a polarização da sociedade espanhola. Pode legitimamente perguntar-se que discurso e linguagem mais extremos vão Feijoo e o VOX utilizar no Congresso de Deputados para a investidura depois de mimos dirigidos a Sánchez e ao PSOE como genocida e criminoso capaz de esquartejar uma nação, passo efetivo para a ditadura, amigo de etarras e cúmplice de independentistas e outros mimos do mesmo calibre. Impressiona ver um tipo tão direitinho e moderado como Feijoo partilhar o mesmo descontrolo verbal de Abascal do VOX, contribuindo por essa via para incendiar as calles, onde declaradamente extremistas de direita dominaram os acontecimentos, incluindo ações de intimidação a jornalistas e outras derivas. Tudo isto me impressionou tanto que, para amansar a consciência, lá fui ler o texto do acordo, nunca perdendo de vista que Puigdemont seria daquelas pessoas que eu nunca ousaria convidar para vir cá a casa, que é o meu critério de eleição para avaliar se vale a pena perder tempo com alguém, designadamente em matéria de discussão de ideias políticas. Mas uma coisa é o personagem, outra bem diferente é a análise de um acordo político.)

 

Devo confessar que o texto do acordo me surpreendeu pela positiva. Não estando em causa a sua exequibilidade de implementação, sobretudo devido à incontinência política do Junts, trata-se de um texto político bastante objetivo. Destaco sobretudo o capítulo de antecedentes da situação política hoje vivida na Catalunha que é perspetivada de forma bastante objetiva e atribuindo grande importância à decisão do Tribunal Constitucional espanhol de 2010, a qual resultou de uma iniciativa do PP que viria a envenenar todo o processo subsequente em que o partido recorria com o Estatuto de Autonomia aprovado pelo Parlamento catalão, as Cortes Gerais e em referendo. Na sequência dessa decisão constitucional, a Catalunha passou a ser a única Comunidade Autónoma com um Estatuto que não foi integralmente votado pela sua cidadania e esta intervenção do PP comprometeu um estádio de cooperação institucional alcançado e entretanto desfeito pela decisão do Tribunal Constitucional.

A partir desta base, ambas as partes, PSOE e JUNTS explicitam claramente no texto do acordo a sua divergência quanto à consulta popular de 9 de novembro de 2014, referendo para a independência de 1 de outubro de 2017 e declaração unilateral de independência em 27 de outubro de 2017, marcando diferenças e assumindo o compromisso político de negociar a partir desta divergência de base. Entendem as partes que só a nível político será possível dirimir este conflito, aliás passados já seis anos depois dos conturbados acontecimentos de 1 de outubro de 2017 e aplicação do célebre artigo 155º da Constituição que dissolveu o Parlamento catalão e conduziu à criminalização dos implicados no Procès. Embora não compreenda ainda bem que saída política pode ser construída, não tenho dúvidas de que só no plano político será possível ultrapassar o conflito e de que o PP e o VOX são incapazes de o resolver.

O acordo celebrado consagra a metodologia de negociação para alcançar a tal desejada saída política e delimita as matérias de negociação a duas: a superação dos défices da governação autonómica e ao reconhecimento nacional da Catalunha. Abre-se uma tentativa de aproximação entre a ideia do referendo para a autodeterminação proposta pelo JUNTS e a exploração do estatuto de autonomia de 2006 proposta pelo PSOE. Acordam também expedientes para uma cláusula de exceção fiscal e financeira para a Catalunha em função do sistema institucional da Generalitat.

E obviamente a inflamada questão da amnistia que, dada a sua relevância e impacto explosivo, devo citar para alcançar a maior objetividade possível: “A Lei da Amnistia, para procurar a normalidade política, institucional e social plena como condição indispensável para abordar os desafios do futuro imediato. Esta lei deve abranger tanto os responsáveis como os cidadãos que, antes e depois da consulta de 2014 e do referendo de 2017, foram objeto de decisões ou processos judiciais vinculados a estes eventos. Neste sentido, as conclusões das comissões de investigação desta legislatura serão tidas em conta na aplicação da lei da amnistia na medida em que possam dar origem a situações abrangidas pelo conceito de conflito jurídico ou judicialização da política, com as consequências que, se assim for observado, possam dar lugar a ações de responsabilização ou modificações legislativas” (sublinhado meu).

Com exceção deste último parágrafo que me parece fonte de todos os conflitos de interpretação possíveis e se ignorarmos por agora o estilo flutuante de exercício da política por parte do JUNTS, o acordo parece-me escorreito a partir do momento em que consagra uma ideia com a qual concordo: o conflito catalão só tem resolução possível no quadro político. Permite a investidura de Sánchez, mas aponta à estabilidade de uma legislatura. Aparentemente. E digo-o porque Puigdemont, em declarações posteriores à assinatura do acordo, apressou-se a sublinhar que esta legislatura será diferente da anterior. Esta última partia de uma estabilidade garantida à partida. Agora, essa estabilidade evoluirá acordo a acordo. O homem das franjinhas não podia ser mais claro – uma coisa é o texto do acordo, outra bem diferente será a prática concreta da sua aplicação.

De qualquer modo, avaliar à luz deste acordo toda a violência de impropérios dirigidos a Sánchez mostra bem que a direita espanhola está desvairada, a ponto de alguém, direitinho e moderado como Feijoo, e talvez acossado à sua direita por Isabel Ayuso, não hesitar em cavalgar a onda do extremismo na calle.

Por tudo isto e apesar do aspeto escorreito do acordo que me agradou, continuo a pensar que o PSOE vai muito provavelmente “comer o pão que o diabo amassou”. Opção consciente e legítima, mas com riscos do arco da velha.

 

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