domingo, 19 de novembro de 2023

O PASSADO QUEIMA E PODE SER LETAL

 


(O combate para a sucessão de António Costa no PS começa a proporcionar elementos de análise, com os materiais de reflexão mais importantes a serem suscitados não pelo alinhamento de personalidades, embora nesse alinhamento possam ser encontradas contradições e incoerências evidentes, mas antes pela argumentação que começa a ser percebida pelas afirmações públicas dos dois candidatos. E, na minha perspetiva, aquilo que emerge não é nada promissor, não pelas consequências da sucessão em si própria considerada, mas sim pelo que elas podem representar de capital eleitoral para 10 de março. Vou dedicar um post a este aquecer de motores e gostaria de o fazer sob a ideia de que o síndroma do passado em política é geralmente penoso e letal, pois regra geral é sempre concretizado de modo descontextualizado. Por isso, neste meu modesto entender de escriba nas horas vagas, o combate político tem de ser realizado com elementos de presente e futuro e sempre que possível fugir do passado como diabo que foge da cruz.

 

Ana Sá Lopes e São José Almeida, jornalistas de pena incisiva e direta como aprecio, têm ambas razão quando a primeira sugere que José Luís Carneiro está a prestar um bom serviço à direita para o 10 de março e a segunda sublinha que “Mais do que continuar a personalizar a política o PS deve debater projetos de país”. A razão de ambas terem razão está no facto do passado irromper no debate político, nunca com a devida contextualização que a sua interpretação exige, mas como fonte bibliográfica de fogachos, deslizes, tentações, desabafos e mesmo decisões que, sem a devida contextualização, são pedra mole e adaptável para todos os objetivos, incluindo os menos claros.

As duas matérias de passado que têm sido mais mobilizadas para interpretar o posicionamento dos dois candidatos são os dislates que Pedro Nuno Santos proferiu em alguns momentos-chave da nossa história recente e o posicionamento do partido em relação à experiência passada da geringonça. Ambos pertencem ao passado e só vale a pena retomá-los se enquadrados pelo contexto em que se observaram.

Quanto aos dislates de PNS desvalorizo-os em abstrato e contextualizo-os à luz do “ódio” que alguns de nós expressaram à influência nefasta das sociedades de rating e também à inflexível e interesseira posição alemã quanto à crise das dívidas soberanas, em que instituições financeiras e bancárias alemãs estavam enterradas até ao pescoço e que não descansaram enquanto não se puseram ao fresco. As posições de PNS têm de ser analisadas à luz do presente e do futuro e a questão orientadora certa é esta: a imaturidade política mantém-se ou está ultrapassada e não compromete a sua possível ascensão a primeiro-Ministro? Chamo a atenção para que a resposta a esta questão não tem nada que ver com uma moderação à pressa ou a um posicionamento ao centro por mera conveniência tática. Vai ser a dinâmica concreta destes dias até às primárias que nos irá permitirá responder a esta questão e não os dislates do passado, que todos temos na nossa carteira de pronunciamentos públicos, dinâmica que não deve integrar, por favor, qualquer esboço de autocrítica “à la maoismo” da revolução cultural. Poupem-nos. Se a quiserem fazer, façam-na nos confessionários, se tiverem orientação religiosa para tal, ou então espiem penosamente a culpa, em solitário.

A análise dos alinhamentos em função dos posicionamentos em relação à geringonça é outro dos exemplos gritantes, em que o recurso descontextualizado ao passado corre sempre mal. Não vou repetir aqui a minha heterodoxa interpretação de que a geringonça representou a forma política possível para a gestão do pós-TROIKA, que, repito-me, foi considerada por muita gente de direita a grande oportunidade de suprimir os arcaísmos indesejáveis (segundo o seu sistema de valores) da sociedade portuguesa. O ir além da TROIKA não foi mais do que isso, foi simplesmente isso. Também acho que sem António Costa e a sua particular relação com o PCP tal fórmula não teria sido possível, independentemente dessa experiência ter de ser obviamente avaliada pelas forças políticas que a protagonizaram. Descontextualizar a geringonça tem tudo reunido para a interpretação e eventual reedição correr mal. E Santo Deus não é por PNS poder dar-se melhor com o Bloco de Mortágua que a sua reedição pode ser possível. A questão está na sociedade portuguesa de hoje e com os problemas instalados. E obviamente quando Portugal está mais perto de estar no grupo dos países com emissões de dívida mais procurados isso não é matéria para reinvocar descontextualizadamente os dislates de PNS contra as agências de rating.

Por isso, com o material que está cá fora dos dois candidatos, sobretudo ideias quanto ao presente e futuro, continua a ser difícil tomar posição, o que para alguém da área socialista como eu não deixa de ser não direi uma preocupação, mas talvez a razão para um interregno de reflexão.

Conforme se depreende dos meus últimos posts, interessa-me mais a discussão sobre os grandes temas que atravessam esta crise política. Continuo a pensar que na sequência de temas de grandeza efémera ou não, só a evolução tecnológica futura o dirá, como as web summits deste mundo ou os data centers (já repararam que o da Covilhã que fazia parte da ideia estapafúrdia da PT como empresa global está as moscas e à venda?), continua sobre nós o cutelo do irrealismo dos grandes projetos. E não contraditoriamente com o que escrevi há pouco é tempo de voltar ao passado, não para o descontextualizar, mas apenas para revisitar o pensamento de Eduardo Lourenço. Não esqueçam que a queda do império (tenho sinceras dúvidas em classificá-lo assim) colonial, ou mais modestamente com a descolonização e retorno ao retângulo europeu e periférico, temos um problema para resolver. A ilusão de que sendo pequenos e acantonados fôramos e éramos grandes, numa desproporcionada avaliação de capacidades que nos conduziu á diáspora, quebrou-se de forma rude e violenta. Acho que não temos o problema resolvido e que temos na história recente aderido a sucessivas ilusões de megalomania, que foram objeto do meu post sobre a maldição dos grandes projetos. Creio que para passar à frente, teríamos de alimentar uma visão mais territorial do país e da sua diversidade de recursos, para a qual a classe política portuguesa continua indiferente.

Pela minha parte, irei na segunda feira próxima estar no Fórum Altice de Braga a falar para os chamados embaixadores empresariais do município de Braga e chamar uma vez mais a atenção para o potencial do sistema de inovação organizado em torno das cidades de Barcelos, Braga, Guimarães e Vila Nova de Famalicão, como argumento decisivo para fazer avançar essa visão mais territorializada do país e dos seus recursos. O que corresponde a valorizar a diversidade da nossa pequenez, que exige certamente capital estrangeiro para o valorizar e estender, mas não segundo o modelo da ilusão de que podemos ser grandes.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário