quinta-feira, 2 de novembro de 2023

PORTUGAL E O ESTADO GLOBAL DA DEMOCRACIA EM 2023

 


(Pelo que apurei o Diário de Notícias foi o primeiro jornal a comentar o relatório do Global State of Democracy 2023 publicado pelo Intituto sueco IDEA – International Institute for Democracy and Electoral Assistance. Os estudos elaborados em torno de rankings internacionais apresentam sempre, de modo ambivalente, o interesse de captar a atenção mediática para a hierarquia dos resultados, mas também o inconveniente de, para um dado país concreto, não nos fornecer um conhecimento pormenorizado sobre a evolução observada por esse mesmo país nas matérias versadas pelo indicador sintético. O interesse atual de acompanhar a evolução do estado global da democracia no mundo e em zonas geográficas específicas é generalizadamente reconhecido e já aqui, neste blogue e por repetidas vezes, chamei a atenção para o estranho fenómeno da migração dos autoritarismos e das democracias iliberais de países de baixo nível de desenvolvimento para o mundo mais avançado, EUA e Europa incluídos. O Estado Global da Democracia dá conta neste relatório dessa estranha migração, largamente acompanhada do incremento do surto de populismo, fazendo-o para três momentos no tempo, 2017, 2021 e 2022. Como esperava, a evolução de Portugal neste ranking e nos seus indicadores parcelares é calculada, mas sem nos trazer grande conhecimento sobre as razões que determinaram o agravamento na maioria dos indicadores de que se alimenta o indicado sintético global.)


 

O indicador do estado global da democracia é estruturado pelo IDEA em função de quatro grandes variáveis:

  • ·    Representação democrática (eleições credíveis e efetividade do Parlamento);
  • ·      Respeito pelos direitos humanos (liberdade de expressão, de reunião e de associação);
  • ·      Respeito pela lei (estado de direito – independência da justiça e integridade e segurança de todos os cidadãos e ausência de corrupção);
  • ·      Participação cívica e política (livre envolvimento dos cidadãos em instituições de compensação).

O relatório de 2023 além de prosseguir o seu trabalho normal de calcular indicadores para estas dimensões para um número elevado de países dedica nesta versão uma forte atenção ao que designa de instituições de contraponto ou compensação (countervailing institutions). Estas instituições são entendidas como mecanismos potenciais poderosos para assegurar o equilíbrio entre diferentes órgãos de poder e governação e também para criar as condições mais adequadas para que os cidadãos sejam ouvidos nas suas pretensões e reivindicações.

Num estado global de deterioração da democracia global identificável em 2022, que é essencialmente devida à já referida migração dos autoritarismos e derivas democráticas para as economias avançadas sem o registo de melhorias a esse nível nos países de mais baixo desenvolvimento, interessaria analisar se a experiência portuguesa acompanha a evolução europeia nesta matéria ou se, pelo contrário, apresenta especificidades que vão além desse sentido mais global.

Construí uma simples tabela em que anoto a evolução da posição de Portugal nas quatro dimensões do índice sintético global:

Evolução do ranking de Portugal nas quatro dimensões do índice de democracia global, 2022, 2022 e 2017

Dimensões

2022

2021

2017

Participação

69º

76º

57º

Representação

22º

Direitos

31º

31º

31º

Respeito pela lei

34º

33º

22º

Não é novidade que a sociedade portuguesa não é particularmente rica e pródiga em participação cívica nas tais instituições de compensação ou contraponto atrás referidas. A posição portuguesa em matéria de participação contrasta vigorosamente com a das democracias mais avançadas da Europa (a Dinamarca, a Finlândia e a Irlanda encabeçam este indicador, com a curiosidade de Taiwan ser quarta nesse indicador. Neste contexto, a oscilação de degradação entre 2017 e 2022 do ranking e a melhoria entre 2021 e 2022 creio que não tem significado comparável com o facto estrutural mais importante – a sociedade portuguesa tem aqui um enorme campo de progressão, sendo necessário que a as políticas públicas contribuam para esse desiderato.

Dada a estabilidade do indicador relativo aos direitos de liberdade de expressão, reunião e associação, no qual Portugal deveria aspirar a uma maior proximidade com a União Europeia, a evolução simultaneamente mais crítica e difícil de explicar acontece nos indicadores de representação e de respeito pela lei, particularmente o primeiro.

Ensaiei nesse sentido uma leitura mais aprofundada do relatório para ver se ele fornece elementos para compreender a nossa própria evolução. Paradoxalmente, onde o relatório é mais prolixo é no indicador dos direitos, no qual a posição de Portugal é estável, mas que dá para perceber a razão do 31º lugar no ranking: “os declínios afetaram sobretudo os países com mais elevado desempenho, tais como a Alemanha, os Países Baixos e Portugal, a maior parte das vezes com relação com a deterioração das condições de censura. Na Alemanha e em Portugal, os peritos testemunharam preocupações quanto à vigilância dos jornalistas, particularmente em relação à confidencialidade das fontes (RSF 2023; IPI 2021). Enquanto os Países Baixos promoveram medidas de proteção preventivas cm vinculação legal e procuradores públicos desde 2019, os peritos avisam que a autocensura pode emergir como consequência dos sinais de agressões crescentes contra jornalistas (Media Freedom Rapid Response 2022). A Alemanha (2ª) e os Países Baixos (17º) permanecem entre as 2º posições de topo e Portugal (31º) permanece estável”.

Já no que respeita aos restantes indicadores, particularmente os de representação e de respeito pela lei, o relatório não refere nada de específico em relação a Portugal, o que está na linha dos inconvenientes atrás devidamente realçados. Imagino que os níveis de corrupção salientes em alguns processos mediáticos sejam os principais responsáveis pela deterioração observada no indicador de respeito pela lei.

Fica assim uma sensação algo amarga sobre o contributo deste relatório para percebemos melhor a evolução do estado da democracia em Portugal.

 

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