Alguém me fez sentir a sua estranheza por ontem me ter precipitado a analisar a entrevista do primeiro-ministro pelo lado de um dos entrevistadores em vez de me centrar no supostamente essencial, o seu conteúdo propriamente dito. A questão parece cheia de sentido mas só teria efetiva pertinência se o dito governante não fosse a nulidade pessoal e política que é, como aliás por diversas vezes e formas penso termos conseguido demonstrar neste espaço.
Contudo, e confrontado que fui com o desafio, não quero deixar de lhe corresponder. Pois Passos foi igual a ele mesmo, i.e., uma mão cheia de nada – um homem só sereno na aparência, uma figura algo artificial e ensebada, uma atitude falsamente firme a esconder a insegurança, uma presença afetada com disfarçadas pinceladas de candura, um discurso pretensamente técnico mas redondo e contraditório, uma escolha temática largamente dissociada da situação do País e das reais preocupações dos portugueses, um objetivo único de fazer passar a qualquer preço uma ficção autolegitimadora (sobretudo baseada numa imaginativa e insistente proclamação de um mirífico sucesso – Portugal a viver “um momento histórico”!!! – assente na credibilidade externa reconquistada, na qualidade da consolidação orçamental realizada e na mudança conseguida do perfil estrutural da economia portuguesa) . E, finalmente, rezando em surdina para que o calendário fosse cumprido e a encomenda bem entregue, as perguntas lhe dessem ensejo para queimar o máximo de tempo possível, o relógio ajudasse a que aquilo acabasse depressa e a encenação contribuísse para o prolongamento de um teatro em que usufrui da complacência da maioria e de uma reconfortante glorificação vinda de apaniguados e subalternos.
Mas há ainda um ponto concreto a merecer uma atenção específica. Aquele em que Passos disse, e cito: “Houve um erro, de facto, no programa que foi desenhado para Portugal. Esse erro não tem que ver com a maneira como o programa estava concebido, tem que ver com as metas que estavam fixadas em termos quantitativos. Há uma explicação para esse erro. Não havia na altura a perspetiva de que, quer o défice de 2010 quer a previsão de défice para 2011, se afastasse tanto daquilo que eram na altura as previsões que tinham sido feitas, quer pelo Governo quer por essas entidades. Ora, esse erro devia ter sido corrigido posteriormente de uma forma mais pronunciada. Ele foi um pouco corrigido, mas não suficientemente corrigido. (...) Nós em 2010 tivemos, de facto, em Portugal um défice muito próximo daquele que teve a Irlanda, se descontarmos impactos extraordinários como a intervenção que foi feita nos bancos no caso da Irlanda: nó tínhamos um défice de quase 10%, a Irlanda tinha um défice de cerca de 10,7%, portanto não estamos a falar de uma diferença muito grande. Com uma diferença: é que na Irlanda essa era a expectativa para o défice mas em Portugal a expectativa para o défice, durante os primeiros três meses do anos de 2011, apontava para um défice inferior a 6,5% em 2010 – ele acabou quase em 10%. O próprio PEC IV, que foi apresentado na altura pelo Governo e pelos vistos em negociação já com a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu, apontava mesmo uma meta de défice para 2011 de 4,5%, totalmente irrealista. Ora, o que é que se passou? No caso da Irlanda, os objetivos que foram fixados foram muito realistas: para o ano seguinte ao défice de 10,7% a Irlanda devia cumprir um défice de 10,6, portanto praticamente não tinha de reduzir o défice no primeiro ano do programa; no segundo ano do programa, devia reduzir 1% e, no terceiro ano, outro 1% – de facto, a Irlanda tinha como objetivo para este ano um défice de 7,5%. No caso de Portugal, o nosso objetivo era de 5,9% logo no primeiro ano, quer dizer uma redução do défice de quase 40%, portanto muito. Convém dizer aqui que nem o Governo português, o meu Governo, tinha uma noção disto – evidentemente que não pusemos em questão as projeções que vinham do anterior Governo e que vinham do Memorando de Entendimento –, tínhamos ideia de que havia ali alguma coisa que poderia estar um pouco otimista de mais mas nunca que houvesse uma divergência desta natureza. O Fundo Monetário Internacional, juntamente com o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia, evidentemente que se aperceberam, também posteriormente, deste irrealismo de partida, E por isso, dado que nós mostramos determinação para cumprir o programa, em 2012 aceitaram fazer um reajustamento destas metas. Eu julgo que nesse reajustamento poderia ter havido um pouco mais de realismo, quer para 2012 quer para 2013.”
Sobre esta matéria, e logo de seguida no “Quadratura do Círculo, Pacheco Pereira não evitou pronunciar-se do seguinte modo: “Quando o primeiro-ministro disse que tinha ficado surpreendido com o défice que tinha herdado, e que esse défice só foi do conhecimento dele muito tempo depois, está a mentir”. Acrescentando, sob o olhar deferente e algo incomodado do invertebrado Miguel Frasquilho: “Se se tratasse de um jornalista com conhecimento – neste caso nem é de Economia, é dos factos – diria: ‘não, porque o valor de nove vírgula não sei quantos por cento já era conhecido cerca de um mês antes da assinatura do Memorando’”; e lembrando também que as negociações com a Troika foram acompanhadas de perto pelo PSD.
Pormenores e minudências à parte, a questão é muito determinante. Sobretudo porque a hipótese de Passos estar a falar verdade significaria termos de reconhecer que vivemos em estado de delírio coletivo nestes quase três anos...
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