Chamem-me masoquista por passar algumas horas de
uma manhã de férias a ler com atenção o acórdão do Tribunal Constitucional (TC)
que decidiu pela inconstitucionalidade do corte de pensões da Caixa Geral de
Aposentações. Talvez seja preciosismo analítico exagerado, pois bastaria
reconhecer que as instituições do Estado de direito funcionaram. Ponto.
Mas a leitura do acórdão é reconfortante, pois
evidencia um elevado grau de proteção e bom senso de quem não tem outros meios
de proteção face aos desmandos e inconsistências de quem nos governa, de quem
mete os pés pelas mãos, de quem prepara documentos de fundamentação e
enquadramento que põem a nu a inconsistência dos argumentos utilizados, de quem
ataca os incautos e desprevenidos.
O TC tem em matéria de pensões um elevado capital
a seu favor, pois foi capaz de, perante o argumento generalizado na opinião
pública genérica e especializada de que a contribuição extraordinária seria
inconstitucional, encontrar fundamentos sólidos na Constituição da República
Portuguesa (CRP) para a admitir como solução transitória de contributo para a
estabilidade do sistema de que os pensionistas são únicos e legítimos
beneficiários.
O acórdão convenceu-me plenamente quanto à recusa
de um dos argumentos de inconstitucionalidade apresentados pela Presidência da
República – a consideração do corte de pensões ao abrigo da convergência dos
sistemas da CGA e do regime geral de Segurança Social, que obrigaria a que a
medida acautelasse aquilo que se exige a um imposto sobre o rendimento.
O argumento é neste caso muito claro: “o imposto
é uma prestação patrimonial positiva que não depende de qualquer outro vínculo
anterior”, ao passo que “a redução da pensão assenta necessariamente num
vínculo jurídico que obriga ai seu pagamento”. Para além disso, como qualquer
estudante de finanças públicas compreende, os impostos financiam globalmente as
despesas públicas, ao passo que as pensões “têm por finalidade específica a
sustentabilidade do sistema previdencial público e a justiça intergeracional”.
Assunto encerrado. É no âmbito do direito da segurança social e não no da
fiscalidade que a (in)constitucionalidade deve ser analisada.
Resta por isso invocar aqui a prosa e
argumentação estimulante que o relator do Acordão concretizou para fundamentar
a inconstitucionalidade da medida.
A sua leitura é antes do mais um curso breve
sobre a evolução da segurança social em Portugal, através do qual se percebe
que o princípio de um direito á segurança social e de um regime unificado (que
ainda não existe verdadeiramente) não só está constitucionalmente consagrado
como já é antevisto na primeira legislação conhecida em Portugal sobre a
matéria.
O Acordão é extremamente explícito consagra
inequivocamente que um direito à pensão mas não necessariamente a um valor
determinado dessa pensão, o que afasta a ideia peregrina de que o TC é um fator
de bloqueio ao inviabilizar qualquer possibilidade de redução da pensão
inicialmente determinada, em função de fatores financeiros e materiais que o
Estado não domina. Nessa perspetiva, o Acordão é de uma profunda meticulosidade
na demonstração das condições em que o princípio da confiança tem de ser
equacionado e respeitado sempre no âmbito da ponderação de dois interesses que
se contrapõem: “as expectativas dos particulares na continuidade do quadro
legislativo vigente e as razões de interesse público que justificam a não
continuidade das soluções legislativas”.
A argumentação do TC é contundente em demonstrar
que, do lado das expectativas dos particulares, o legislador elaborou toda uma
vasta e diversificada legislação nesta matéria preservando essas legítimas
expectativas e marcando bem a diferença entre os que se aposentaram e os que têm
a pensão ainda em formação trabalhando e descontando. Assim sendo, depreende-se
que a lei agora considerada inconstitucional é débil na demonstração de que o
interesse público justificaria a quebra dessas expectativas. Aliás, como seria
antecipável face ao modo como esta maioria tem entendido e vilipendiado o
conceito de interesse público. Por outras palavras, o que o Acordão vem
demonstrar é que a atabalhoada argumentação do governo não consegue integrar
coerentemente os temas da sustentabilidade do sistema público de pensões, as
questões de justiça intergeracional e da convergência entre os dois regimes.
Ficámos ainda a saber que, a partir do momento em
que foram encerradas a partir de 1 de
janeiro de 2006 as novas inscrições na CGA, “o ónus da insustentabilidade
financeira do sistema deixou de poder ser imputado apenas aos seus beneficiários,
atuais ou futuros”. O fecho dessas novas entradas gera obviamente a insustentabilidade
do sistema, já que à medida que se concretizam as saídas de atividade não há
novas entradas que a possam compensar no sistema de redistribuição e não de
capitalização que o nosso sistema apresenta. Por isso, o argumento da
insustentabilidade não pode ser utilizado como argumento para fazer recair nos
beneficiários de pensões CGA a correção da insustentabilidade estrutural que
aquela decisão provocou, substituindo-se às transferências do Orçamento de
Estado.
O acórdão demonstra ainda que a medida agora
considerada inconstitucional não constitui uma medida estrutural de convergência
de pensões e muito menos de justiça intergeracional, representando apenas uma “medida
avulsa de redução de despesa”. E se não bastasse isso, apanha o Governo na
curva: o que é apresentado como um contributo para a reforma estrutural do
sistema é contraditado pelo caráter temporário atribuído às medidas. Esta
contradição espelha bem o estilo de governação desta maioria: pensa num
objetivo e camufla-o para adoçar a pílula com a miragem do caráter temporário
das medidas. Liminarmente, o TC arruma a questão afirmando: “A redução de
pensões é uma medida conjuntural para resolução de problemas imediatos de equilíbrio
e consolidação orçamental e não uma medida que vise a sustentabilidade
financeira da Caixa”. O TC desmonta assim a ideia de que o Governo
tenha apresentado uma solução sistémica e estrutural para a insustentabilidade
do sistema, colocando em plano de igualdade os beneficiários dos dois sistemas
de segurança social. Perante tal ausência, é o princípio da confiança das
justas e legítimas expectativas dos pensionistas da CGA que deve ser defendido,
já que a demonstração do interesse público é de novo atamancada pela maioria.
Louvemos de facto o estado de direito e
coloquemos no caixote do lixo da história pequena aqueles que o atropelam
incessantemente.
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