sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

LOUVEMOS O ESTADO DE DIREITO



Chamem-me masoquista por passar algumas horas de uma manhã de férias a ler com atenção o acórdão do Tribunal Constitucional (TC) que decidiu pela inconstitucionalidade do corte de pensões da Caixa Geral de Aposentações. Talvez seja preciosismo analítico exagerado, pois bastaria reconhecer que as instituições do Estado de direito funcionaram. Ponto.
Mas a leitura do acórdão é reconfortante, pois evidencia um elevado grau de proteção e bom senso de quem não tem outros meios de proteção face aos desmandos e inconsistências de quem nos governa, de quem mete os pés pelas mãos, de quem prepara documentos de fundamentação e enquadramento que põem a nu a inconsistência dos argumentos utilizados, de quem ataca os incautos e desprevenidos.
O TC tem em matéria de pensões um elevado capital a seu favor, pois foi capaz de, perante o argumento generalizado na opinião pública genérica e especializada de que a contribuição extraordinária seria inconstitucional, encontrar fundamentos sólidos na Constituição da República Portuguesa (CRP) para a admitir como solução transitória de contributo para a estabilidade do sistema de que os pensionistas são únicos e legítimos beneficiários.
O acórdão convenceu-me plenamente quanto à recusa de um dos argumentos de inconstitucionalidade apresentados pela Presidência da República – a consideração do corte de pensões ao abrigo da convergência dos sistemas da CGA e do regime geral de Segurança Social, que obrigaria a que a medida acautelasse aquilo que se exige a um imposto sobre o rendimento.
O argumento é neste caso muito claro: “o imposto é uma prestação patrimonial positiva que não depende de qualquer outro vínculo anterior”, ao passo que “a redução da pensão assenta necessariamente num vínculo jurídico que obriga ai seu pagamento”. Para além disso, como qualquer estudante de finanças públicas compreende, os impostos financiam globalmente as despesas públicas, ao passo que as pensões “têm por finalidade específica a sustentabilidade do sistema previdencial público e a justiça intergeracional”. Assunto encerrado. É no âmbito do direito da segurança social e não no da fiscalidade que a (in)constitucionalidade deve ser analisada.
Resta por isso invocar aqui a prosa e argumentação estimulante que o relator do Acordão concretizou para fundamentar a inconstitucionalidade da medida.
A sua leitura é antes do mais um curso breve sobre a evolução da segurança social em Portugal, através do qual se percebe que o princípio de um direito á segurança social e de um regime unificado (que ainda não existe verdadeiramente) não só está constitucionalmente consagrado como já é antevisto na primeira legislação conhecida em Portugal sobre a matéria.
O Acordão é extremamente explícito consagra inequivocamente que um direito à pensão mas não necessariamente a um valor determinado dessa pensão, o que afasta a ideia peregrina de que o TC é um fator de bloqueio ao inviabilizar qualquer possibilidade de redução da pensão inicialmente determinada, em função de fatores financeiros e materiais que o Estado não domina. Nessa perspetiva, o Acordão é de uma profunda meticulosidade na demonstração das condições em que o princípio da confiança tem de ser equacionado e respeitado sempre no âmbito da ponderação de dois interesses que se contrapõem: “as expectativas dos particulares na continuidade do quadro legislativo vigente e as razões de interesse público que justificam a não continuidade das soluções legislativas”.
A argumentação do TC é contundente em demonstrar que, do lado das expectativas dos particulares, o legislador elaborou toda uma vasta e diversificada legislação nesta matéria preservando essas legítimas expectativas e marcando bem a diferença entre os que se aposentaram e os que têm a pensão ainda em formação trabalhando e descontando. Assim sendo, depreende-se que a lei agora considerada inconstitucional é débil na demonstração de que o interesse público justificaria a quebra dessas expectativas. Aliás, como seria antecipável face ao modo como esta maioria tem entendido e vilipendiado o conceito de interesse público. Por outras palavras, o que o Acordão vem demonstrar é que a atabalhoada argumentação do governo não consegue integrar coerentemente os temas da sustentabilidade do sistema público de pensões, as questões de justiça intergeracional e da convergência entre os dois regimes.
Ficámos ainda a saber que, a partir do momento em que foram  encerradas a partir de 1 de janeiro de 2006 as novas inscrições na CGA, “o ónus da insustentabilidade financeira do sistema deixou de poder ser imputado apenas aos seus beneficiários, atuais ou futuros”. O fecho dessas novas entradas gera obviamente a insustentabilidade do sistema, já que à medida que se concretizam as saídas de atividade não há novas entradas que a possam compensar no sistema de redistribuição e não de capitalização que o nosso sistema apresenta. Por isso, o argumento da insustentabilidade não pode ser utilizado como argumento para fazer recair nos beneficiários de pensões CGA a correção da insustentabilidade estrutural que aquela decisão provocou, substituindo-se às transferências do Orçamento de Estado.
O acórdão demonstra ainda que a medida agora considerada inconstitucional não constitui uma medida estrutural de convergência de pensões e muito menos de justiça intergeracional, representando apenas uma “medida avulsa de redução de despesa”. E se não bastasse isso, apanha o Governo na curva: o que é apresentado como um contributo para a reforma estrutural do sistema é contraditado pelo caráter temporário atribuído às medidas. Esta contradição espelha bem o estilo de governação desta maioria: pensa num objetivo e camufla-o para adoçar a pílula com a miragem do caráter temporário das medidas. Liminarmente, o TC arruma a questão afirmando: “A redução de pensões é uma medida conjuntural para resolução de problemas imediatos de equilíbrio e consolidação orçamental e não uma medida que vise a sustentabilidade financeira da Caixa”. O TC desmonta assim a ideia de que o Governo tenha apresentado uma solução sistémica e estrutural para a insustentabilidade do sistema, colocando em plano de igualdade os beneficiários dos dois sistemas de segurança social. Perante tal ausência, é o princípio da confiança das justas e legítimas expectativas dos pensionistas da CGA que deve ser defendido, já que a demonstração do interesse público é de novo atamancada pela maioria.
Louvemos de facto o estado de direito e coloquemos no caixote do lixo da história pequena aqueles que o atropelam incessantemente.

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