sexta-feira, 18 de março de 2016

UM ESTRANHO CONCEITO DE LEGALIDADE





Não é novidade para ninguém, a não ser para os mais distraídos, de que a convivência das autoridades europeias com a lei internacional e com a sua própria produção legislativa está longe de ser pacífica. Duncan Robinson tem hoje no Brussels Briefing do Financial Times uma entrada deliciosa quando recupera parte do diálogo (escutas) entre Nixon e Frost (caso Washington Post) em que o primeiro afirma que quando é o Presidente a decidir por uma ilegalidade em favor do interesse nacional isso concede-lhe legalidade e equipara a situação ao que se vem passando na UE em matéria de refugiados. Ora, o jornalista do FT não deve andar a ver catadupas de episódios do House of Cards e por isso não deve estar a ver filmes, mas a apontar na direção certa.

Estive a ler o draft de acordo que tem acompanhado o Presidente do Conselho Europeu Donald Tusk nas negociações com a Turquia e a interpretação sagaz que Peter Spiegel faz das entrelinhas do mesmo e só com uma interpretação largamente elástica se pode concluir que o projeto de acordo não viola a Convenção de Genebra em matéria de asilo político. Não é para já indiferente que a Turquia não seja um país signatário desse acordo. Nas condições atuais, apenas os refugiados sírios estão cobertos na Turquia por princípios de acolhimento similares aos da convenção de Genebra, o que obrigaria a Turquia a uma significativa revisão das condições de acolhimento. O texto de quatro páginas tem algumas preciosidades em matéria do “faz de conta”, colocando a Turquia disposta a receber de forma relativamente rápida (já agora seria mais correto colocar em função do calendário eleitoral alemão!) os refugiados chegados à Grécia que “não necessitem de proteção internacional”. O preciosismo quer dizer que podendo ser recebidos num país terceiro como a Turquia então o princípio da não necessidade de proteção internacional poderá ser aplicado. O princípio da Convenção Internacional de que todo o refugiado deve ter uma audição por uma autoridade parece claramente quebrado, já que tal concretização não parece estar humana e credivelmente ao alcance das autoridades gregas. Em simultâneo, todos os refugiados que transitem irregularmente entre a Turquia e a Grécia serão devolvidos ao seu ponto de partida.

Já não estou a ocupar-me de outros aspetos também problemáticos do possível acordo que envolvem a questão de Chipre e o seu veto do prosseguimento dos dossiers para a avaliação da adesão da Turquia e a necessidade de convencer a França de que a integração daquela, a processar-se, será no tempo longínquo em que Hollande já terá batido a bota ou que estará impossibilitado de experimentar a sua motoreta das escapadelas.

Mas vale a pena invocar uma outra preciosidade que consistir em decidir que “por cada sírio regressado à Turquia a partir das ilhas gregas, outro sírio será transferido da Turquia para a Europa”. Peter Spiegel considera-a e com razão uma engenharia obtusa para tentar desestimular refugiados a arriscar apanhar um barco em direção às ilhas gregas.

Hoje de manhã, o primeiro-Ministro Davotuglu insistia que a Turquia não estava a pedinchar nada e que os objetivos humanitários eram a principal preocupação das forças em negociação. Pelo que vai sendo conhecido, a União Europeia está disposta a abrir os cordões à bolsa (pudera!), duplicando o montante inicialmente oferecido à Turquia, fazendo depender a aplicação desta segunda tranche de resultados visíveis no acolhimento. Imagino que a Turquia estará essencialmente a pedir maior celeridade visível na abertura dos diferentes e intermináveis processos que precedem o pedido de adesão. O que não deixa de ser um paradoxo dos gigantescos, pois neste momento a União Europeia não tem qualquer posição formada sobre a aceitação ou rejeição da integração da Turquia, pois se não existisse crise de refugiados a senhora Merkel não estaria a pedir batatinhas aos turcos, como a última condição para salvar a sua própria pele.

Tudo isto é triste, tudo isto é fado. E para aclarar ainda melhor as coisas, o Tribunal de Contas arrasou ontem o uso de fundos da União Europeia em termos de política externa, escrevendo preto no branco que apenas conseguiu registos de accountability de 20% dos fundos alocados. O que significa que algo em torno de mil milhões de euros e picos andam por aí a vaguear sabe-se lá em que bolsas ou contas. E é esta mesma União Europeia que se auto-designa de grande defensora do rigor orçamental.

Duncan Robinson não podia estar mais certo. A União tem um conceito muito particular de legalidade.

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