Não é novidade para ninguém, a não ser para os mais
distraídos, de que a convivência das autoridades europeias com a lei
internacional e com a sua própria produção legislativa está longe de ser
pacífica. Duncan Robinson tem hoje no Brussels Briefing do Financial Times uma
entrada deliciosa quando recupera parte do diálogo (escutas) entre Nixon e
Frost (caso Washington Post) em que o primeiro afirma que quando é o Presidente
a decidir por uma ilegalidade em favor do interesse nacional isso concede-lhe
legalidade e equipara a situação ao que se vem passando na UE em matéria de
refugiados. Ora, o jornalista do FT não deve andar a ver catadupas de episódios
do House of Cards e por isso não deve estar a ver filmes, mas a apontar na
direção certa.
Estive a ler o draft de acordo que tem acompanhado o Presidente do Conselho Europeu Donald Tusk nas
negociações com a Turquia e a interpretação sagaz que Peter Spiegel faz das
entrelinhas do mesmo e só com uma interpretação largamente elástica se pode
concluir que o projeto de acordo não viola a Convenção de Genebra em matéria de
asilo político. Não é para já indiferente que a Turquia não seja um país
signatário desse acordo. Nas condições atuais, apenas os refugiados sírios
estão cobertos na Turquia por princípios de acolhimento similares aos da
convenção de Genebra, o que obrigaria a Turquia a uma significativa revisão das
condições de acolhimento. O texto de quatro páginas tem algumas preciosidades
em matéria do “faz de conta”, colocando a Turquia disposta a receber de forma
relativamente rápida (já agora seria mais correto colocar em função do
calendário eleitoral alemão!) os refugiados chegados à Grécia que “não
necessitem de proteção internacional”. O preciosismo quer dizer que podendo ser
recebidos num país terceiro como a Turquia então o princípio da não necessidade
de proteção internacional poderá ser aplicado. O princípio da Convenção
Internacional de que todo o refugiado deve ter uma audição por uma autoridade
parece claramente quebrado, já que tal concretização não parece estar humana e
credivelmente ao alcance das autoridades gregas. Em simultâneo, todos os
refugiados que transitem irregularmente entre a Turquia e a Grécia serão
devolvidos ao seu ponto de partida.
Já não estou a ocupar-me de outros aspetos também
problemáticos do possível acordo que envolvem a questão de Chipre e o seu veto
do prosseguimento dos dossiers para a avaliação da adesão da Turquia e a
necessidade de convencer a França de que a integração daquela, a processar-se,
será no tempo longínquo em que Hollande já terá batido a bota ou que estará
impossibilitado de experimentar a sua motoreta das escapadelas.
Mas vale a pena invocar uma outra preciosidade que
consistir em decidir que “por cada sírio regressado à Turquia a partir das
ilhas gregas, outro sírio será transferido da Turquia para a Europa”. Peter
Spiegel considera-a e com razão uma engenharia obtusa para tentar desestimular
refugiados a arriscar apanhar um barco em direção às ilhas gregas.
Hoje de manhã, o primeiro-Ministro Davotuglu insistia que
a Turquia não estava a pedinchar nada e que os objetivos humanitários eram a
principal preocupação das forças em negociação. Pelo que vai sendo conhecido, a
União Europeia está disposta a abrir os cordões à bolsa (pudera!), duplicando o
montante inicialmente oferecido à Turquia, fazendo depender a aplicação desta
segunda tranche de resultados
visíveis no acolhimento. Imagino que a Turquia estará essencialmente a pedir
maior celeridade visível na abertura dos diferentes e intermináveis processos
que precedem o pedido de adesão. O que não deixa de ser um paradoxo dos
gigantescos, pois neste momento a União Europeia não tem qualquer posição
formada sobre a aceitação ou rejeição da integração da Turquia, pois se não
existisse crise de refugiados a senhora Merkel não estaria a pedir batatinhas
aos turcos, como a última condição para salvar a sua própria pele.
Tudo isto é triste, tudo isto é fado. E para aclarar
ainda melhor as coisas, o Tribunal de Contas arrasou ontem o uso de fundos da
União Europeia em termos de política externa, escrevendo preto no branco que
apenas conseguiu registos de accountability
de 20% dos fundos alocados. O que significa que algo em torno de mil milhões de
euros e picos andam por aí a vaguear sabe-se lá em que bolsas ou contas. E é
esta mesma União Europeia que se auto-designa de grande defensora do rigor
orçamental.
Duncan Robinson não podia estar mais certo. A União tem
um conceito muito particular de legalidade.
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