(O Programa
Nacional para a Coesão Territorial é uma tentativa de coordenar e congregar
forças em matéria de políticas públicas para minimizar um problema que já há
longo tempo se transformou em algo de estrutural, apesar de ser necessário saudar e
discriminar positivamente a resistência dos que não rejeitam viver na
interioridade do nosso retângulo…)
O Público de ontem dedicou três páginas (da 10 à12) ao tema da
interioridade e do seu declínio, atribuindo-lhe um título pelo menos enigmático:
“O interior precisa de uma drástica mudança de imagem”. E para permanecer no
domínio da imaterialidade, a jornalista Ana Cristina Pereira invocou as
declarações do amigo João Ferrão quando ele nos confronta com a ideia de que o
interior começa nas nossas cabeças, estimulando-nos a pensar que “se grande
parte do interior deixar de ser pensado – e visto – como interior, remove-se
logo uma série de obstáculos”.
Como se percebe pelos meus escritos, não sou dos que recusa entrar pelos
domínios da imaterialidade para abordar o problema estrutural da interioridade,
mas que me perdoem a jornalista Ana Cristina Pereira e o meu amigo João Ferrão
mas as questões da interioridade são de outra natureza. Primeiro, nunca o
interior beneficiou de uma imagem como a que foi possível constituir nos
últimos tempos com a ajuda preciosa dos Fundos Estruturais e do engenho dos
autarcas que alindaram territórios e pequenas cidades. Segundo, não seria tão
otimista como o João Ferrão. Não é só o problema do interior que começa nas
nossas cabeças, é todo o problema do país. Eu sei que há quem pense que se
olharmos o interior português do ponto de vista da Ibéria ele deixa de ser
interior para assumir alguma centralidade. Mas apenas no mapa, acrescentaria
eu. O território espanhol de proximidade ao nosso vasto interior também não
navega em águas de riqueza. E Madrid está longe. Certamente que Valladolid,
Salamanca, Cáceres, só para falar em algumas cidades com alguma expressão e
mais próximas, podem interagir com o nosso interior. Mas não chega o slogan comercial de que o nosso interior
pode ser o gourmet dessas cidades, é
preciso algo mais.
Desenvolvamos então algumas ideias para ir além da mudança de imagem e do
reposicionamento mental das nossas cabeças.
Primeiro, é sensato recordar que, em democracia, o direito à circulação e
mobilidade no território é algo de inalienável e intrínseco. Pode aliás
dizer-se que a maneira como os cidadãos mudam os seus padrões de localização
residencial constitui um ato democrático precioso e profundo, ao qual os
Governos, qualquer que seja a sua cor, deveriam prestar mais atenção. Alguém
duvida de que o modo como os jovens qualificados e os jovens casais procuraram
nos últimos anos alternativa de emprego e de vida em cidades por esse mundo
fora, das mais longínquas às mais próximas de um voo low-cost, representou uma decisão democrática de grande alcance,
tão importante como se tivessem pronunciado em eleições? Pela minha parte essas
dúvidas não existem.
Segundo, em democracia económica e apesar de ser possível os poderes
públicos influenciarem as decisões empresariais, a liberdade de circulação do
investimento e do capital é também algo de incontornável. Os empresários
investem onde reconhecem existir uma oportunidade, havendo toda uma paleta de situações
numa economia como a portuguesa. Dos empresários que perscrutam oportunidades
num raio limitado determinado pela génese socioeconómica do seu estatuto de
empresário, que pode ser os limites de um concelho de nascimento, até aos
empresários que captam oportunidades na economia global, o território de
implantação do investimento é escolhido em função de um universo de variáveis, de
que só uma parte do vetor de variáveis pode ser influenciada pelos poderes
públicos.
Terceiro, o poder de contrabalanceamento que os poderes públicos podem
oferecer nesta matéria depende do poder de fogo em termos de investimento
público. Ora esse poder de fogo está hoje seriamente limitado. Pode dizer-se
que, no passado, as baterias de fogo dos Fundos Estruturais poderiam ter sido
melhor coordenadas. Posso admiti-lo sem qualquer esforço. Mas uma avaliação
rigorosa do que foi disparado dir-nos-á que, descontando alguma dispersão e
atomização de fogo, foi possível alterar decisivamente as condições
infraestruturais de vida e de acessibilidade. É verdade que essas duas
melhorias em termos de coesão e acessibilidade não inverteram o paradigma de
esvaziamento. Infraestruturação e melhoria de condições de vida nunca bastaram
para inverter situações de esvaziamento. Não é grande novidade. Mas não podemos
ignorar que o interior está hoje em melhores condições para aspirar a que os
poderes públicos possam jogar a discriminação positiva e criar condições em
alguns territórios para criar investimento e emprego. Não vale a pena carpir mágoas
e ceder à tentação do papagaio que repete vezes sem fim que infraestruturamos
demais. Sim e depois? Não será melhor tirar partido disso do que fazer chicana
política em torno dessa matéria? Aliás, como a negociação do Portugal 2020 bem
o mostrou, essa tentação deu para o torto já que influenciou negativamente as
negociações, convencendo os burocratas de Bruxelas de que Portugal estava
sobre-infraestruturado.
Porém, não será de per si a lógica do investimento municipal que poderá
inverter a situação. A equipa do Professor Eduardo Castro da Universidade de
Aveiro mostrou em livro que tive o prazer de apresentar no Porto que a questão
demográfica é hoje indissociável da questão do investimento e do emprego. A
percentagem de mulheres em idade ativa de procriação no interior é já demasiado
baixa e só um grande impulso migratório de retorno, em pacote conjunto com
investimento e oferta de emprego, poderá contrabalançar as difíceis condições
de transição demográfica que o interior viverá nos próximos 20 a 30 anos. O que
vai exigir opções de concentração territorial e de discriminação positiva para
lograr atingir dinâmicas de inversão. Ora, a lógica municipal não é capaz de
racionalizar essas opções de concentração. E como referi anteriormente o poder
de fogo em termos de investimento público está limitado a pólvora seca.
O Douro, território cuja problemática conheço melhor, demonstra bem a
complexidade do problema.
A economia do vinho, com a sua mediatização e charme próprio, na sua dupla
dimensão de recuperação do prestígio do vinho do Porto e de exploração do filão
dos vinhos do Douro DOC, veio trazer ao Douro as condições de imagem e de
atratividade necessárias para interessar jovens qualificados em matéria de
fixação. Grande parte desses jovens casais, enólogos, economistas, técnicos de
comunicação e marketing, filhos de famílias que regressaram ao Douro, trabalham
nas quintas e residem em Vila Real, pois só aí é possível responder às
necessidades de educação dos filhos. Alguns permanecem no Porto, hesitantes
quanto à fixação. Mas o Douro está diferente. A economia do vinho seduz, talvez
seduza demasiado e não é líquido que todos os investimentos realizados no Douro
DOC sejam sustentáveis. Creio que o reforço do Enoturismo com dinâmica de
irradiação a partir do Porto vai criar novas condições de sedução para fixações
adicionais. Vila Real tem provavelmente a base urbana mais propensa a
capitalizar este surto de interesse pela nova imagem do Douro. Torre de
Moncorvo e Lamego poderão talvez aspirar a uma quota parte dessa fixação, acaso
se organizem para tal. Mas os problemas de desenvolvimento socioeconómico do
Douro não desapareceram. O problema social dos pequenos
agricultores-viticultores, agudizando excedentes incompatíveis com a excelência
que se quer atingir, está lá, intacto, expectante. A atração dos jovens
qualificados não resolve outras carências de mão-de-obra. Só em meu entender um
processo intenso de organização de vontades e de voluntariado tem resolvido ano
a ano as questões da vindima. A questão demográfica existe como a equipa de
Eduardo Castro bem a colocou. Só talvez um surto migratório organizado,
internacional claro está, terá possibilidade de minimizar o problema. A imagem
mudou e os jovens qualificados que regressaram ao Douro não pensam na
inevitabilidade do subdesenvolvimento. Mas o problema global existe.
E o poder de fogo do investimento público é algo controverso. Investimentos
de modernização de adegas, infraestruturas vitivinícolas, de enoturismo e de
preservação do património têm sido mobilizados via Fundos Estruturais,
incluindo o apoio duvidoso a alguns festivais demasiado efémeros para meu gosto.
Mas o investimento público propriamente dito não consegue erradicar a imagem lamentável,
suja e inenarrável das carruagens dos comboios que ligam o Porto à Régua e a
cada vez menos lugares rio acima. Não reparei se essa medida está no pacote do Programa
Nacional para a Coesão Territorial. Mas essa carência mostra como o fogo das
infraestruturas foi tão caótico.
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