terça-feira, 27 de dezembro de 2016

INTERIORIDADES




(O Programa Nacional para a Coesão Territorial é uma tentativa de coordenar e congregar forças em matéria de políticas públicas para minimizar um problema que já há longo tempo se transformou em algo de estrutural, apesar de ser necessário saudar e discriminar positivamente a resistência dos que não rejeitam viver na interioridade do nosso retângulo…)

O Público de ontem dedicou três páginas (da 10 à12) ao tema da interioridade e do seu declínio, atribuindo-lhe um título pelo menos enigmático: “O interior precisa de uma drástica mudança de imagem”. E para permanecer no domínio da imaterialidade, a jornalista Ana Cristina Pereira invocou as declarações do amigo João Ferrão quando ele nos confronta com a ideia de que o interior começa nas nossas cabeças, estimulando-nos a pensar que “se grande parte do interior deixar de ser pensado – e visto – como interior, remove-se logo uma série de obstáculos”.

Como se percebe pelos meus escritos, não sou dos que recusa entrar pelos domínios da imaterialidade para abordar o problema estrutural da interioridade, mas que me perdoem a jornalista Ana Cristina Pereira e o meu amigo João Ferrão mas as questões da interioridade são de outra natureza. Primeiro, nunca o interior beneficiou de uma imagem como a que foi possível constituir nos últimos tempos com a ajuda preciosa dos Fundos Estruturais e do engenho dos autarcas que alindaram territórios e pequenas cidades. Segundo, não seria tão otimista como o João Ferrão. Não é só o problema do interior que começa nas nossas cabeças, é todo o problema do país. Eu sei que há quem pense que se olharmos o interior português do ponto de vista da Ibéria ele deixa de ser interior para assumir alguma centralidade. Mas apenas no mapa, acrescentaria eu. O território espanhol de proximidade ao nosso vasto interior também não navega em águas de riqueza. E Madrid está longe. Certamente que Valladolid, Salamanca, Cáceres, só para falar em algumas cidades com alguma expressão e mais próximas, podem interagir com o nosso interior. Mas não chega o slogan comercial de que o nosso interior pode ser o gourmet dessas cidades, é preciso algo mais.

Desenvolvamos então algumas ideias para ir além da mudança de imagem e do reposicionamento mental das nossas cabeças.

Primeiro, é sensato recordar que, em democracia, o direito à circulação e mobilidade no território é algo de inalienável e intrínseco. Pode aliás dizer-se que a maneira como os cidadãos mudam os seus padrões de localização residencial constitui um ato democrático precioso e profundo, ao qual os Governos, qualquer que seja a sua cor, deveriam prestar mais atenção. Alguém duvida de que o modo como os jovens qualificados e os jovens casais procuraram nos últimos anos alternativa de emprego e de vida em cidades por esse mundo fora, das mais longínquas às mais próximas de um voo low-cost, representou uma decisão democrática de grande alcance, tão importante como se tivessem pronunciado em eleições? Pela minha parte essas dúvidas não existem.

Segundo, em democracia económica e apesar de ser possível os poderes públicos influenciarem as decisões empresariais, a liberdade de circulação do investimento e do capital é também algo de incontornável. Os empresários investem onde reconhecem existir uma oportunidade, havendo toda uma paleta de situações numa economia como a portuguesa. Dos empresários que perscrutam oportunidades num raio limitado determinado pela génese socioeconómica do seu estatuto de empresário, que pode ser os limites de um concelho de nascimento, até aos empresários que captam oportunidades na economia global, o território de implantação do investimento é escolhido em função de um universo de variáveis, de que só uma parte do vetor de variáveis pode ser influenciada pelos poderes públicos.

Terceiro, o poder de contrabalanceamento que os poderes públicos podem oferecer nesta matéria depende do poder de fogo em termos de investimento público. Ora esse poder de fogo está hoje seriamente limitado. Pode dizer-se que, no passado, as baterias de fogo dos Fundos Estruturais poderiam ter sido melhor coordenadas. Posso admiti-lo sem qualquer esforço. Mas uma avaliação rigorosa do que foi disparado dir-nos-á que, descontando alguma dispersão e atomização de fogo, foi possível alterar decisivamente as condições infraestruturais de vida e de acessibilidade. É verdade que essas duas melhorias em termos de coesão e acessibilidade não inverteram o paradigma de esvaziamento. Infraestruturação e melhoria de condições de vida nunca bastaram para inverter situações de esvaziamento. Não é grande novidade. Mas não podemos ignorar que o interior está hoje em melhores condições para aspirar a que os poderes públicos possam jogar a discriminação positiva e criar condições em alguns territórios para criar investimento e emprego. Não vale a pena carpir mágoas e ceder à tentação do papagaio que repete vezes sem fim que infraestruturamos demais. Sim e depois? Não será melhor tirar partido disso do que fazer chicana política em torno dessa matéria? Aliás, como a negociação do Portugal 2020 bem o mostrou, essa tentação deu para o torto já que influenciou negativamente as negociações, convencendo os burocratas de Bruxelas de que Portugal estava sobre-infraestruturado.

Porém, não será de per si a lógica do investimento municipal que poderá inverter a situação. A equipa do Professor Eduardo Castro da Universidade de Aveiro mostrou em livro que tive o prazer de apresentar no Porto que a questão demográfica é hoje indissociável da questão do investimento e do emprego. A percentagem de mulheres em idade ativa de procriação no interior é já demasiado baixa e só um grande impulso migratório de retorno, em pacote conjunto com investimento e oferta de emprego, poderá contrabalançar as difíceis condições de transição demográfica que o interior viverá nos próximos 20 a 30 anos. O que vai exigir opções de concentração territorial e de discriminação positiva para lograr atingir dinâmicas de inversão. Ora, a lógica municipal não é capaz de racionalizar essas opções de concentração. E como referi anteriormente o poder de fogo em termos de investimento público está limitado a pólvora seca.

O Douro, território cuja problemática conheço melhor, demonstra bem a complexidade do problema.

A economia do vinho, com a sua mediatização e charme próprio, na sua dupla dimensão de recuperação do prestígio do vinho do Porto e de exploração do filão dos vinhos do Douro DOC, veio trazer ao Douro as condições de imagem e de atratividade necessárias para interessar jovens qualificados em matéria de fixação. Grande parte desses jovens casais, enólogos, economistas, técnicos de comunicação e marketing, filhos de famílias que regressaram ao Douro, trabalham nas quintas e residem em Vila Real, pois só aí é possível responder às necessidades de educação dos filhos. Alguns permanecem no Porto, hesitantes quanto à fixação. Mas o Douro está diferente. A economia do vinho seduz, talvez seduza demasiado e não é líquido que todos os investimentos realizados no Douro DOC sejam sustentáveis. Creio que o reforço do Enoturismo com dinâmica de irradiação a partir do Porto vai criar novas condições de sedução para fixações adicionais. Vila Real tem provavelmente a base urbana mais propensa a capitalizar este surto de interesse pela nova imagem do Douro. Torre de Moncorvo e Lamego poderão talvez aspirar a uma quota parte dessa fixação, acaso se organizem para tal. Mas os problemas de desenvolvimento socioeconómico do Douro não desapareceram. O problema social dos pequenos agricultores-viticultores, agudizando excedentes incompatíveis com a excelência que se quer atingir, está lá, intacto, expectante. A atração dos jovens qualificados não resolve outras carências de mão-de-obra. Só em meu entender um processo intenso de organização de vontades e de voluntariado tem resolvido ano a ano as questões da vindima. A questão demográfica existe como a equipa de Eduardo Castro bem a colocou. Só talvez um surto migratório organizado, internacional claro está, terá possibilidade de minimizar o problema. A imagem mudou e os jovens qualificados que regressaram ao Douro não pensam na inevitabilidade do subdesenvolvimento. Mas o problema global existe.

E o poder de fogo do investimento público é algo controverso. Investimentos de modernização de adegas, infraestruturas vitivinícolas, de enoturismo e de preservação do património têm sido mobilizados via Fundos Estruturais, incluindo o apoio duvidoso a alguns festivais demasiado efémeros para meu gosto. Mas o investimento público propriamente dito não consegue erradicar a imagem lamentável, suja e inenarrável das carruagens dos comboios que ligam o Porto à Régua e a cada vez menos lugares rio acima. Não reparei se essa medida está no pacote do Programa Nacional para a Coesão Territorial. Mas essa carência mostra como o fogo das infraestruturas foi tão caótico.

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