terça-feira, 6 de dezembro de 2016

BOAVENTURA NÃO É PARA VERSOS!


Boaventura Sousa Santos é um dos nossos mais brilhantes e exóticos intelectuais/académicos de esquerda, assim como também um cidadão ativa e constantemente presente na sociedade portuguesa há várias décadas. Ao que se vai sabendo e observando, Boaventura é capaz do melhor e do pior – um catedrático autoritário, senhor de si e zeloso do poder que soube acumular (vejam-se os amores e ódios de que goza na sua Universidade e não só), um investigador e autor de obras de indiscutível qualidade (vejam-se, sobretudo, os seus trabalhos iniciais e as suas excelentes incursões pela área de Justiça) a par de outras menos felizes (especialmente as mais marcadas e fechadas do ponto de vista ideológico-doutrinário), um exemplar participante em redes internacionais de reflexão e saber (veja-se o prestígio que conseguiu granjear em várias sub-regiões do Brasil e dos Estados Unidos), um focado e empenhado conjugador de vontades (veja-se o “Centro de Documentação 25 de Abril”), um mobilizado defensor de causas embora deixando-se por vezes guiar por demagogias quase primárias (veja-se a sua vergonhosa participação na velha questão da coincineração). Pois a última coisa que passou pela cabeça de Boaventura foi a de, não querendo perder a oportunidade de homenagear Fidel por ocasião da sua morte, se decidir por uma concretização de tal projeto pela via poética e de um modo tão absurdamente rococó que chega a roçar a caricatura – reproduzo abaixo a peça em causa (“Na morte de Fidel”), onde se fala de “azeite puro em manivelas de razão quente”, de um “barco polifónico da dignidade” ou dos “sistemas de irrigação industrial da alma”; não é bem verdade que cada macaco no seu galho?

É urgente um verso vermelho / que suspenda a animação deste desastre / pensado para durar depois do inverno
É urgente um verso vermelho / com todas as cores do arco íris / e o vento natural do universo
É urgente um verso vermelho / que ponha de novo em movimento os comboios da imaginação / azeite puro em manivelas de razão quente / o peso da história de novo levíssimo / a rodar sobre perguntas livres e ruínas vivas / a paisagem mudar primeiro lentamente / enquanto vão entrando vozes ainda submersas / e corpos mal refeitos da desfiguração da guerra e do comércio /das crateras e promoções
É urgente um verso vermelho / que desate os nós da memória e do medo / e resgate os rios da rebeldia / a palavra cristalina inabalável / inconfundível com as mordaças sonoras /à venda nos supermercados da ordem
É urgente um verso vermelho / para anunciar barco polifónico da dignidade / pronto a navegar / os rios libertos das barragens calcinadas / dos sistemas de irrigação industrial da alma
É urgente um verso vermelho / uma luz manual portátil que vá connosco / sem esperar a que virá no fundo do túnel se vier / porque a cegueira da viagem é sempre mais perigosa / que a da chegada / talvez só entrega / talvez só paragem
É urgente um verso vermelho / que trace um território inacessível / aos vendedores de mobílias espirituais / e turismo de acomodação
É urgente um verso vermelho / vinho de bom ano para acompanhar / sonhos sãos e saborosos / preparados em brasas de raiva e a brisa da alegria
É urgente um verso vermelho / sem solenidades nem códigos especiais / para devolver as cores ao mundo / e as deixar combinar com a criatividade própria dos vendavais”.

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