(Caricatura desenhada pelo NGO deste vosso amigo)
(Uma festa bonita,
sensível, organizada pela família Guedes Oliveira para relembrar os 70 anos que
o amigo Nuno Guedes de Oliveira faria se a doença não o tivesse afastado
precocemente do nosso convívio, com distribuição do livro que reuniu testemunhos e croniquetas dos seus
mais próximos …)
Uma noite de ontem fria e húmida que não impediu uma receção extremamente quente
afetiva, na velha casa da Rua das Cavadas (que diferença neste território da
Cidade), para relembrar os 70 anos do desaparecido Nuno. Lá estava toda a família
mais próxima (ainda há famílias assim!) e os amigos que privaram mais de perto
com o fulgor e tenacidade daquela personalidade.
E já que o livro foi já oferecido a todos, para memória futura aqui fica o
meu texto:
PROVA DE
VIDA – TRIBUTO À SAUDADE DE UM AMIGO
Quando o Pedro me falou para
participar neste conjunto de textos que festejam os 70 anos que o pai Nuno
Guedes de Oliveira hoje teria se os deuses não nos tivessem privado da sua
presença, foi com júbilo espontâneo que aderi à iniciativa.
Escrever, com saudade, acerca do
Nuno é percorrer largas horas da minha vida pessoal e profissional, não com o
simples propósito de satisfazer um compromisso, mas pelo prazer de reviver
tempos de cumplicidade, de alegria no trabalho, no combate cívico, no prazer de
tentar fazer diferente, no gozo da pluri e da interdisciplinaridade, enfim, na
aventura do trabalho conjunto, envolvendo aliás outros colegas representados
neste testemunho.
O Nuno era mais velho do que eu
cerca de três anos e por essa diferença e por geografias metropolitanas e
sociais diversas não partilhamos adolescência nem as redes interpessoais da
universidade. É por isso interessante perguntar como é que acontece a nossa
convergência. Ela acontece num tronco comum de amizades e de aventuras
profissionais, na altura protagonizadas pelo escritório do Manuel Fernandes de
Sá. Aí, no que viria a transformar-se na CEAPE, referência do planeamento e da
arquitetura, recordo-me dos primeiros esquiços do Souto Moura, dei os meus
primeiros passos no planeamento e na ligação da economia com o território e foi
aí que conheci o Nuno e comecei a partilhar com ele experiências de trabalho e
alguma convivência social (quem não se recorda por exemplo do jogo de futebol
com a equipa técnica da Câmara Municipal de Braga ou da caldeirada nas ilhas da
Murtosa organizada pelo então padre e presidente da Câmara que haveria de
morrer tragicamente às mãos de um trator mal manejado).
Foi nessa área de influência que
partilhamos a nossa primeira experiência cívica, integrando uma equipa técnica
vasta que trabalhou durante algum tempo para o Conselho da Revolução, na qual
uma equipa a norte dialogava com uma equipa a sul de que a memória me consegue
lembrar principalmente o Francisco Avillez. Outros nomes subsistem mais
obscuros na minha memória já um pouco fragmentada, dos quais ouso ainda
recordar Vítor Guerra, Amílcar Martins. Já nessa altura me unia ao Nuno uma
maneira diferente de pensar as coisas a norte, talvez mais integrada e interdisciplinar,
embora o tema da nossa atividade fosse essencialmente uma visão mais
multifacetada do território continental e o desenho do que poderíamos designar
de Setor Social de Base, algo em torno da economia que deveria suportar um
modelo de desenvolvimento económica e socialmente mais equilibrado. Tal como
iria acontecer em outras aventuras, partilhava com o Nuno o estatuto dos mais
jovens dos referidos coletivos, cabendo-nos a irreverência da análise e que bem
o Nuno protagonizava esse estatuto.
O Nuno trazia da sua presença no
Instituto de Urbanismo Duarte Pacheco uma cultura de modernidade na análise
territorial e urbana que a sua convivência com o Arquiteto Duarte Castel-Branco
e a equipa aí residente lhe tinha proporcionado. O rigor e a frescura dessa
análise marcou-me para sempre, através do Nuno tive acesso a uma vastíssima
produção que aquele Instituto tinha protagonizado, uma herança incontornável
que pessoalmente gostaria de ver melhor recordada e preservada. Discutíamos
muito na altura se com aquele conhecimento e saber-fazer acumulado não teria
sido possível o país ter urbanizado planeada e rigorosamente toda a frente
atlântica de Braga a Setúbal. Em todo este processo, aprendi primeiro com o
Manuel Fernandes de Sá (MFS) e depois essencialmente com o Nuno a dialogar
economicamente com o planeamento e sobretudo a partilhar aquele entusiasmo
pelas novas ideias e pelo desconhecido das intervenções nunca antes desenhadas.
Por razões que a minha memória tem
dificuldade em isolar, provavelmente por questões de seletividade afetiva, o
grupo que trabalhava em torno do escritório do MFS cindiu-se praticamente em
dois.
O Nuno e o Manuel Miranda criaram o
seu próprio escritório, ao qual aderi e que haveria de dar origem à PLANUM, a
que se juntou uns anos depois o também saudoso e desaparecido Professor Abílio
Cardoso e o sociólogo Adriano Zilhão. Lembro-me que começámos na cave do
edifício dos tios do Nuno (pais do Miguel Rangel Henriques), em frente ao
Vigorosa, onde existia então a fábrica de malhas Helena, migrámos para a Rua
Santos Pousada e depois a Visconde Setúbal, esta última já sem a companhia do
Nuno.
Mas participámos ainda em dois
outros coletivos.
O primeiro, a RESULTANTE, era uma
associação-tertúlia que funcionava no edifício da Afrontamento, em Costa
Cabral, que agrupava gente mais nova como o Nuno, o Manuel Miranda e eu e gente
mais velha como o Nuno Grande, o Rui Oliveira, a Laurinda Alves (técnica nas
Biomédicas Abel Salazar, onde os mais novos e irreverentes aprenderam muito. O
grupo chegou a ter alguma intervenção cívica em torno de modelos de
desenvolvimento mais integrado e alternativo, antecipando no tempo os temas da
sustentabilidade. O entusiasmo, graça, espírito de irreverência crítica do Nuno
eram contagiantes. Aqueles coletivos não teriam sido os mesmos sem a sua prova
de vida.
O outro coletivo que prolongou a
nossa cumplicidade foi a constituição de um grupo de alta consultoria à revisão
do Plano Auzelle na Câmara Municipal do Porto, a convite do Arquiteto
Castel-Branco, que dirigia os trabalhos, já numa altura da sua vida, demasiado
refém do seu passado parisiense e dos trabalhos de Henri Lefèvre. O grupo
funcionava como uma espécie de refrescamento de ideias ao Duarte e integrava
gente deliciosa. Eu e o Nuno assumíamos a parte mais nova, a que se juntava um
conjunto precioso de gente mais velha como o Professor Arquiteto Octávio Lixa
Filgueiras, o Professor Nuno Grande, o Professor Pereira de Oliveira (Coimbra)
e o advogado do Duarte, o Dr. António Poiares, que era espantoso a elaborar e
negociar contratos de consultoria. As condições em que o trabalho decorreu
foram inenarráveis, sobretudo pela forte resistência dos serviços da Câmara
Municipal a tão estranha e complexa equipa. Em torno do Duarte e da equipa de
consultores funcionava uma vasta equipa de jovens técnicos recrutados para o
efeito, que oscilava entre o respeito hierárquico e a sedução pelas perspetivas
mais inovadoras que protagonizávamos. Em todo este processo, a presença do Nuno
era simultaneamente um cimento agregador das diferenças e a irreverência
crítica e imaginativa que nos motivava e nos mantinham despertos a cada
dificuldade.
O Duarte Castel-Branco era um homem
de rituais e o grupo de consultores entrava nessa encenação. Todas as
sextas-feiras, a equipa reunia ao almoço no ainda Hotel Batalha, para o
aquecimento das ideias e da discussão do dia, prolongando-se a reunião por toda
a tarde e muitas vezes noite, em sala reservada do hotel para as discussões
mais profundas e sigilosas e no Gabinete de Planeamento Urbanístico, em S.
Roque, para a interação com a equipa técnica residente. As discussões eram
acesas, pontuadas por clivagens como a ortodoxia versus heterodoxia em
planeamento e não é necessário grande esforço para perceber onde o Nuno
permanentemente se situava. Tenho uma saudade profunda do ambiente daqueles
almoços no Hotel Batalha, sempre acompanhados da presença diligente do chefe de
mesa, o senhor Mesquita, já íntimo do Duarte, nos quais a frescura de espírito
do Nuno, o seu amor pela vida, e a sofisticação do seu gosto gastronómico
contagiavam o ambiente.
A equipa tinha os seus retiros.
Recordo especialmente um deles. O Presidente Paulo Vallada e o Engº Carlos
Brito convidaram o Duarte e a sua equipa para um momento de reflexão política
mais profunda sobre os grandes desígnios de Cidade que a revisão do Plano
deveria assegurar. Penso que por proposta e organização do Professor Pereira de
Oliveira, a equipa reuniu-se num fim-de-semana num antigo convento, propriedade
da Universidade de Coimbra, se a memória não me atraiçoa, o Convento de S.
Marcos. Alta intensidade de discussão, com aqui e ali o Engº Carlos Brito algo
atordoado pela heterodoxia de alguns de nós, com aquela pergunta que todos
sentíamos latente a pairar: será que estas mentes vão ser capazes de produzir
um Plano?
Não resisto a contar-vos um episódio
desse retiro. Nos poucos momentos de distensão que esse encontro nos
proporcionou, dou comigo com o Nuno a “intervir” sobre um busto de D.Miguel que
olhava atónito tão estranho grupo reflexivo. A composição consistiu em colocar
no busto o boné escocês ou irlandês que o Nuno por vezes usava, o seu cachecol
e os seus óculos escuros. Percebi a ideia. Tratava-se de dar aquela personagem
uma natureza menos intimidatória e mais conforme à heterodoxia do pensamento
que por ali circulava. É impossível esquecer-me do rosto lívido do Professor
Pereira de Oliveira, agoniado por tal travessura. Era assim aquele grupo, era
assim o Nuno.
Tenho assim um tributo especial ao
Nuno pela cumplicidade que me proporcionou. Mais tímido, mais reservado e
claramente menos sociável do que o Nuno, devo-lhe essa prova de vida e
sobretudo a companhia iniciática em ambientes em que me movimentava obviamente
mal. Devo-lhe também o conhecimento de muitas outras pessoas que sem a sua
intermediação provavelmente nunca teria conhecido. Os irmãos Pedro, Alexandre e
o Paulo (o saudoso Paulo), o primo Vasco Vieira de Almeida, o Miguel Henriques,
a tia Helena, as tertúlias a três em casa do Arquiteto Lixa Filgueiras, paredes
meias com a sua casa na Rua de S. Tomé, sempre degustando os biscoitos da D. Olívia,
mulher do Lixa Filgueiras, ou por vezes na York House às Janelas Verdes, em
Lisboa.
O Nuno é para mim uma prova de vida
permanente e por isso este tributo de saudade tem muito de experiência afetiva
que não consigo isolar da irreverência das ideias, da criatividade, do prazer
de discutir o menos óbvio, do zurzir da mediocridade, que o Nuno protagonizava.
Teresa, Maria, Joana, António e
Pedro, não consigo imaginar a dolorosa privação que constituiu para vós o
desaparecimento do Marido, Pai, Amigo Nuno. Este singelo tributo talvez não vos
tenha trazido nada de novo, mas aceitem-no como um tributo de saudade por quem
me ajudou a crescer já homem, a encarar a vida de modo diferente, a valorar o
espírito crítico e a combater a mediocridade.
Vila Nova de Gaia, 1 de maio de 2016
António Manuel Figueiredo
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