quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

NO ACONCHEGO DA MEMÓRIA

(Caricatura desenhada pelo NGO deste vosso amigo)



(Uma festa bonita, sensível, organizada pela família Guedes Oliveira para relembrar os 70 anos que o amigo Nuno Guedes de Oliveira faria se a doença não o tivesse afastado precocemente do nosso convívio, com distribuição do livro que reuniu testemunhos e croniquetas dos seus mais próximos …)

Uma noite de ontem fria e húmida que não impediu uma receção extremamente quente afetiva, na velha casa da Rua das Cavadas (que diferença neste território da Cidade), para relembrar os 70 anos do desaparecido Nuno. Lá estava toda a família mais próxima (ainda há famílias assim!) e os amigos que privaram mais de perto com o fulgor e tenacidade daquela personalidade.

E já que o livro foi já oferecido a todos, para memória futura aqui fica o meu texto:

PROVA DE VIDA – TRIBUTO À SAUDADE DE UM AMIGO

Quando o Pedro me falou para participar neste conjunto de textos que festejam os 70 anos que o pai Nuno Guedes de Oliveira hoje teria se os deuses não nos tivessem privado da sua presença, foi com júbilo espontâneo que aderi à iniciativa.
Escrever, com saudade, acerca do Nuno é percorrer largas horas da minha vida pessoal e profissional, não com o simples propósito de satisfazer um compromisso, mas pelo prazer de reviver tempos de cumplicidade, de alegria no trabalho, no combate cívico, no prazer de tentar fazer diferente, no gozo da pluri e da interdisciplinaridade, enfim, na aventura do trabalho conjunto, envolvendo aliás outros colegas representados neste testemunho.
O Nuno era mais velho do que eu cerca de três anos e por essa diferença e por geografias metropolitanas e sociais diversas não partilhamos adolescência nem as redes interpessoais da universidade. É por isso interessante perguntar como é que acontece a nossa convergência. Ela acontece num tronco comum de amizades e de aventuras profissionais, na altura protagonizadas pelo escritório do Manuel Fernandes de Sá. Aí, no que viria a transformar-se na CEAPE, referência do planeamento e da arquitetura, recordo-me dos primeiros esquiços do Souto Moura, dei os meus primeiros passos no planeamento e na ligação da economia com o território e foi aí que conheci o Nuno e comecei a partilhar com ele experiências de trabalho e alguma convivência social (quem não se recorda por exemplo do jogo de futebol com a equipa técnica da Câmara Municipal de Braga ou da caldeirada nas ilhas da Murtosa organizada pelo então padre e presidente da Câmara que haveria de morrer tragicamente às mãos de um trator mal manejado).
Foi nessa área de influência que partilhamos a nossa primeira experiência cívica, integrando uma equipa técnica vasta que trabalhou durante algum tempo para o Conselho da Revolução, na qual uma equipa a norte dialogava com uma equipa a sul de que a memória me consegue lembrar principalmente o Francisco Avillez. Outros nomes subsistem mais obscuros na minha memória já um pouco fragmentada, dos quais ouso ainda recordar Vítor Guerra, Amílcar Martins. Já nessa altura me unia ao Nuno uma maneira diferente de pensar as coisas a norte, talvez mais integrada e interdisciplinar, embora o tema da nossa atividade fosse essencialmente uma visão mais multifacetada do território continental e o desenho do que poderíamos designar de Setor Social de Base, algo em torno da economia que deveria suportar um modelo de desenvolvimento económica e socialmente mais equilibrado. Tal como iria acontecer em outras aventuras, partilhava com o Nuno o estatuto dos mais jovens dos referidos coletivos, cabendo-nos a irreverência da análise e que bem o Nuno protagonizava esse estatuto.
O Nuno trazia da sua presença no Instituto de Urbanismo Duarte Pacheco uma cultura de modernidade na análise territorial e urbana que a sua convivência com o Arquiteto Duarte Castel-Branco e a equipa aí residente lhe tinha proporcionado. O rigor e a frescura dessa análise marcou-me para sempre, através do Nuno tive acesso a uma vastíssima produção que aquele Instituto tinha protagonizado, uma herança incontornável que pessoalmente gostaria de ver melhor recordada e preservada. Discutíamos muito na altura se com aquele conhecimento e saber-fazer acumulado não teria sido possível o país ter urbanizado planeada e rigorosamente toda a frente atlântica de Braga a Setúbal. Em todo este processo, aprendi primeiro com o Manuel Fernandes de Sá (MFS) e depois essencialmente com o Nuno a dialogar economicamente com o planeamento e sobretudo a partilhar aquele entusiasmo pelas novas ideias e pelo desconhecido das intervenções nunca antes desenhadas.
Por razões que a minha memória tem dificuldade em isolar, provavelmente por questões de seletividade afetiva, o grupo que trabalhava em torno do escritório do MFS cindiu-se praticamente em dois.
O Nuno e o Manuel Miranda criaram o seu próprio escritório, ao qual aderi e que haveria de dar origem à PLANUM, a que se juntou uns anos depois o também saudoso e desaparecido Professor Abílio Cardoso e o sociólogo Adriano Zilhão. Lembro-me que começámos na cave do edifício dos tios do Nuno (pais do Miguel Rangel Henriques), em frente ao Vigorosa, onde existia então a fábrica de malhas Helena, migrámos para a Rua Santos Pousada e depois a Visconde Setúbal, esta última já sem a companhia do Nuno.
Mas participámos ainda em dois outros coletivos.
O primeiro, a RESULTANTE, era uma associação-tertúlia que funcionava no edifício da Afrontamento, em Costa Cabral, que agrupava gente mais nova como o Nuno, o Manuel Miranda e eu e gente mais velha como o Nuno Grande, o Rui Oliveira, a Laurinda Alves (técnica nas Biomédicas Abel Salazar, onde os mais novos e irreverentes aprenderam muito. O grupo chegou a ter alguma intervenção cívica em torno de modelos de desenvolvimento mais integrado e alternativo, antecipando no tempo os temas da sustentabilidade. O entusiasmo, graça, espírito de irreverência crítica do Nuno eram contagiantes. Aqueles coletivos não teriam sido os mesmos sem a sua prova de vida.
O outro coletivo que prolongou a nossa cumplicidade foi a constituição de um grupo de alta consultoria à revisão do Plano Auzelle na Câmara Municipal do Porto, a convite do Arquiteto Castel-Branco, que dirigia os trabalhos, já numa altura da sua vida, demasiado refém do seu passado parisiense e dos trabalhos de Henri Lefèvre. O grupo funcionava como uma espécie de refrescamento de ideias ao Duarte e integrava gente deliciosa. Eu e o Nuno assumíamos a parte mais nova, a que se juntava um conjunto precioso de gente mais velha como o Professor Arquiteto Octávio Lixa Filgueiras, o Professor Nuno Grande, o Professor Pereira de Oliveira (Coimbra) e o advogado do Duarte, o Dr. António Poiares, que era espantoso a elaborar e negociar contratos de consultoria. As condições em que o trabalho decorreu foram inenarráveis, sobretudo pela forte resistência dos serviços da Câmara Municipal a tão estranha e complexa equipa. Em torno do Duarte e da equipa de consultores funcionava uma vasta equipa de jovens técnicos recrutados para o efeito, que oscilava entre o respeito hierárquico e a sedução pelas perspetivas mais inovadoras que protagonizávamos. Em todo este processo, a presença do Nuno era simultaneamente um cimento agregador das diferenças e a irreverência crítica e imaginativa que nos motivava e nos mantinham despertos a cada dificuldade.
O Duarte Castel-Branco era um homem de rituais e o grupo de consultores entrava nessa encenação. Todas as sextas-feiras, a equipa reunia ao almoço no ainda Hotel Batalha, para o aquecimento das ideias e da discussão do dia, prolongando-se a reunião por toda a tarde e muitas vezes noite, em sala reservada do hotel para as discussões mais profundas e sigilosas e no Gabinete de Planeamento Urbanístico, em S. Roque, para a interação com a equipa técnica residente. As discussões eram acesas, pontuadas por clivagens como a ortodoxia versus heterodoxia em planeamento e não é necessário grande esforço para perceber onde o Nuno permanentemente se situava. Tenho uma saudade profunda do ambiente daqueles almoços no Hotel Batalha, sempre acompanhados da presença diligente do chefe de mesa, o senhor Mesquita, já íntimo do Duarte, nos quais a frescura de espírito do Nuno, o seu amor pela vida, e a sofisticação do seu gosto gastronómico contagiavam o ambiente.
A equipa tinha os seus retiros. Recordo especialmente um deles. O Presidente Paulo Vallada e o Engº Carlos Brito convidaram o Duarte e a sua equipa para um momento de reflexão política mais profunda sobre os grandes desígnios de Cidade que a revisão do Plano deveria assegurar. Penso que por proposta e organização do Professor Pereira de Oliveira, a equipa reuniu-se num fim-de-semana num antigo convento, propriedade da Universidade de Coimbra, se a memória não me atraiçoa, o Convento de S. Marcos. Alta intensidade de discussão, com aqui e ali o Engº Carlos Brito algo atordoado pela heterodoxia de alguns de nós, com aquela pergunta que todos sentíamos latente a pairar: será que estas mentes vão ser capazes de produzir um Plano?
Não resisto a contar-vos um episódio desse retiro. Nos poucos momentos de distensão que esse encontro nos proporcionou, dou comigo com o Nuno a “intervir” sobre um busto de D.Miguel que olhava atónito tão estranho grupo reflexivo. A composição consistiu em colocar no busto o boné escocês ou irlandês que o Nuno por vezes usava, o seu cachecol e os seus óculos escuros. Percebi a ideia. Tratava-se de dar aquela personagem uma natureza menos intimidatória e mais conforme à heterodoxia do pensamento que por ali circulava. É impossível esquecer-me do rosto lívido do Professor Pereira de Oliveira, agoniado por tal travessura. Era assim aquele grupo, era assim o Nuno.
Tenho assim um tributo especial ao Nuno pela cumplicidade que me proporcionou. Mais tímido, mais reservado e claramente menos sociável do que o Nuno, devo-lhe essa prova de vida e sobretudo a companhia iniciática em ambientes em que me movimentava obviamente mal. Devo-lhe também o conhecimento de muitas outras pessoas que sem a sua intermediação provavelmente nunca teria conhecido. Os irmãos Pedro, Alexandre e o Paulo (o saudoso Paulo), o primo Vasco Vieira de Almeida, o Miguel Henriques, a tia Helena, as tertúlias a três em casa do Arquiteto Lixa Filgueiras, paredes meias com a sua casa na Rua de S. Tomé, sempre degustando os biscoitos da D. Olívia, mulher do Lixa Filgueiras, ou por vezes na York House às Janelas Verdes, em Lisboa.
O Nuno é para mim uma prova de vida permanente e por isso este tributo de saudade tem muito de experiência afetiva que não consigo isolar da irreverência das ideias, da criatividade, do prazer de discutir o menos óbvio, do zurzir da mediocridade, que o Nuno protagonizava.
Teresa, Maria, Joana, António e Pedro, não consigo imaginar a dolorosa privação que constituiu para vós o desaparecimento do Marido, Pai, Amigo Nuno. Este singelo tributo talvez não vos tenha trazido nada de novo, mas aceitem-no como um tributo de saudade por quem me ajudou a crescer já homem, a encarar a vida de modo diferente, a valorar o espírito crítico e a combater a mediocridade.

Vila Nova de Gaia, 1 de maio de 2016
António Manuel Figueiredo

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