(Os referenciais
estão fortemente baralhados, a globalização recuou e é necessário compreender
de que modo o Trumpismo torna ainda mais complexa a perceção do que é que o
progressismo pode representar em tempos tão revoltos, em busca de novas orientações para o
planeamento, para a política económica e para a social-democracia em geral …)
Estamos em tempos revoltos e de forte turbulência. Leituras mais apressadas
podem encontrar na imprevisibilidade de Donald Trump e no seu intervencionismo
de circunstância respostas ao que muitos (designadamente à esquerda) reclamavam
de necessário para suster os rumos da globalização. É preciso cautela. O que
temos de novo (e anterior à ascensão de Trump) é o recuo da globalização após
uma digestão mal feita dos efeitos da crise de 2007-2008. Recuo que tem
determinado sentenças tão ao gosto de alguns jornalistas. Pablo Pardo no El Mundo não hesita em falar que “assim chegou a morte da globalização”. Pese
embora a tendência para a asneira descontrolada, o que não há dúvida é que
entre os “amigos” da globalização por agora se contam apenas as chamadas “meta-empresas
globais”, em nítida rota de colisão com os Estados-Nação mais representativos.
Veja-se, por exemplo, toda a controvérsia em torno dos acordos regionais de
comércio, Atlântico e Pacífico, na qual foi notório que, apesar da bondade da
abertura de oportunidades de comércio e de investimento, a questão chave era a
prerrogativa atribuída às meta-empresas para escaparem às legislações
nacionais, o último bastião do Estado-nação.
Krugman interrogava-se há dias se o Trumpismo iria ou não assegurar a dose
de estímulos fiscais para a economia americana que os intervencionistas
keynesianos vinham reclamando para a economia americana, embora a situação
atual não tenha comparação possível com o contexto de tais exigências há três
ou quatro anos. Os Republicanos são estranhamente mais amigos da contenção
fiscal na oposição, barrando o caminho no Congresso e no Senado a quaisquer
veleidades de aumento de intervencionismo fiscal. Quando, porém, chegam ao
poder, é conhecida a sua tendência para gerar défices, sobretudo por via da
redução descontrolada de impostos para agradar à sua base de apoio. Os
resultados não são claros, sobretudo em termos líquidos. A sanha de destruição
de estímulos e programas sociais pode não ser plenamente compensada com algum
reforço do investimento público em infraestruturas, pelo que não é seguro que
tenhamos intervencionismo líquido.
Mas há um conjunto de questões que continuam sem resposta e que podem
alterar decisivamente o contexto da economia mundial. Uma das mais intrigantes
questões consistirá em saber se o Trumpismo vai ou não ter efeitos no
posicionamento da China nos fluxos de comércio e de capitais à escala mundial.
Aliás, a evolução interna da própria China, em busca de um penoso equilíbrio
de, por um lado, liberalizar em termos de mercado e, por outro, disciplinar a
corrupção interna do Partido Comunista, continua ela própria a representar uma
profunda interrogação.
Um cenário possível consistirá em virmos a ter uma gestão mais musculada da
economia mundial por parte dos seus principais protagonistas. Não direi que tal
cenário dê necessariamente origem a uma série perigosa de guerras comerciais do
tipo “beggar-my-neighbour” ou de
guerras cambiais associadas. Mas que os Estados vão querer reassumir algum
protagonismo na gestão das trocas, colocando um travão às empresas globais, parece-me
evidente que isso vai acontecer. Não é seguro que um cenário dessa natureza
conduza daqui a alguns anos a uma situação de bem-estar mais elevado a nível
global. Trata-se, além disso, de um cenário desfavorável a pequenas economias
como Portugal, incapazes de ditar regras na gestão global do comércio
internacional. Além do mais, é um cenário em que a Europa vai movimentar-se com
dificuldade, depois de um tempo tão prolongado do mais elementar “laissez-faire”, como o foi por exemplo a
pouco cuidada gestão do desmantelamento aduaneiro face à China, designadamente
no domínio dos têxteis, mas não só. Face ao risco de outras gestões musculadas
do comércio mundial, que governação europeia vai impor-se para que não seja um
saco de gatos a impor a solução? Estou profundamente descrente da possibilidade
da União Europeia se movimentar agilmente neste cenário.
Mas o que o Trumpismo anuncia, e não conhecemos ainda a sua repercussão em
termos de formação de comportamentos replicantes, é um capitalismo não baseado
em regras transparentes e escrutináveis. Este comportamento desviante pode ser
entusiasticamente recebido por populações em perda, carecidos de defesa face à
desproteção da globalização. Foi assim que o chamado “rust belt” industrial dos EUA apoiou eleitoralmente Trump. Um capitalismo
sem regras antecipáveis e fruto de negociações caso a caso, como parece ser o
estilo de Trump (a expressão de Lawrence Summers, “ad-hoc deal capitalism”, cunha bem o fenómeno), anuncia o pior. É o
contrário do que a gestão da instabilidade e da incerteza exigiriam. Mas com
eleitores a bater palmas, não ignoremos esse facto.
Sem comentários:
Enviar um comentário