(A economia e os
economistas têm estado na berlinda em tempo de muitas interrogações, com a
realidade a surpreender. Há quem pense que uma “nova economia” está em formação,
não estou disso totalmente convencido. Uma boa forma de ligar o passado a este presento inquieto é começar por
recordar o que Keynes em 1924 designava de um bom economista…)
“O estudo da economia parece não exigir quaisquer
dons especializados de elevada grandeza. Do ponto de vista intelectual, não é a
economia um assunto muito fácil quando comparada com os ramos superiores da filosofia
e da ciência pura? Contudo, os economistas bons ou mesmo competentes são pássaros
raros. Um assunto fácil, no qual poucos atingem a excelência. O paradoxo pode
ser talvez explicado se tivermos em conta que o economista-mestre tem de
possuir uma rara combinação de dons. Ele deve atingir um padrão elevado em diferentes
direções e deve combinar talentos que não é fácil encontrar agrupados. Ele deve
ser, em alguma medida, matemático, historiador, homem de estado, filósofo. Ele
tem de compreender símbolos e usar palavras. Ele deve abordar o particular em
termos do geral e tocar o abstrato e o concreto no mesmo golpe de pensamento. Ele
deve estudar o presente à luz do passado para poder responder aos desafios do
futuro. Nenhuma dimensão da natureza humana ou das suas instituições pode ficar
fora da sua abordagem. Ele tem de ser simultaneamente intencional e desinteressado;
distante e incorruptível como um artista, ainda que algumas vezes devendo estar
perto de ser um político.”
John Maynard
Keynes, Alfred Marshall 1842-1924, The
Economic Journal, Vol. 34, No. 135 (Sep., 1924), pp. 311-372
Esta citação preciosa de Keynes insere-se numa nota biográfica de Alfred
Marshall e invoco-a nesta oportunidade porque ela coloca brilhantemente no centro
da análise as relações entre os economistas e a economia. Estou em crer que se
aplicássemos com rigor o critério apertado de Keynes para caracterizar um
economista competente ficaríamos limitados a uma sociedade residual de gente
considerada lunática pelos seus pares. Pode então perguntar-se como é que a degradação
de padrões se reproduziu? Há uma triangulação que tem de ser invocada: economistas – teoria ou economia política –
ensino da economia. Nesta triangulação há poder académico, não necessariamente
escrutinado democraticamente. A inércia e o poder académico reproduzem os paradigmas
e o ensino da economia molda os economistas, é assim que funciona. Como é óbvio,
há margens de revolta possível. Mas o preço é elevado. A tribo expulsa os que
rejeitam o comportamento iniciático. E há também o choque entre academias.
Por vezes, os desafios impostos por essa incorrigível e incómoda realidade
precipitam acontecimentos e potenciam revoltas. Os decisores de várias origens
e formações que tiveram de enfrentar os acontecimentos de 2007-2008 e a lenta
recuperação que foi possível atingir queixaram-se amargamente da inutilidade do
pensamento económico então disponível e do caráter enviesado dos resultados que
as simulações dos modelos macroeconómicos existentes para atacar a situação. A erosão
do universo dos economistas competentes segundo o critério de Keynes pagou-se
caro. Mas, paradoxalmente, enquanto essas dificuldades colocavam os decisores
em dificuldades, estou em crer que em muitas academias continuava a ensinar-se
economia da mesma maneira com os mesmos conteúdos. Inércia oblige.
Mas a inércia do poder académico e o seu domínio dos mecanismos de reprodução
do pensamento serão assim tão fortes a ponto de ignorar os desafios da incómoda
realidade?
Economistas mais voluntaristas têm afirmado que está em curso uma
transformação, não propriamente uma nova economia, una, gerando um paradigma
alternativo, mas algo de mais modesto, um programa de investigação, com vários
matizes, para uma nova economia. Os primeiros sinais dessa transformação
foram-me transmitidos, devo reconhecê-lo aqui, pelo colega Guilherme Costa, o
qual chega a estas questões mais por via da empresa do que propriamente da
economia. Nomes como Eric Beinhocker, Andrew Haldane e William Lazonick foram-me
sugeridos pelo Guilherme. Tenho prosseguido as minhas pesquisas e é hoje altura
de acusar neste post o texto que Eric Beinhocker acaba de publicar no Evonomics:
“How the Profound Changes in Economics Make
Left verus Right Debates Irrelevant”.
A tese de Beinhocker é que a transformação estará a operar-se através da
busca no passado de contributos para uma perspetiva diferente da economia que
economistas insignes produziram, embora sem terem conseguido a inversão do rumo
das coisas. A transformação em curso seria de natureza multidimensional.
Envolveria: (i) a definição de novos padrões de comportamento dos indivíduos
longe do pressuposto de optimizadores racionais de informação perfeita, mas antes
com capacidade de aprendizagem com o erro, misturando comportamentos dedutivos
e indutivos; (ii) uma nova atenção concedida às estruturas de rede indo muito
para além do sistema de preços; (iii) uma nova perspetiva sobre as instituições
e sobre o evolucionismo das mesmas; (iv) uma abordagem sobre a dinâmica dos desequilíbrios;
(v) a consagração da inovação como um processo evolucionista e coenvolvendo tecnologia
e sociedade; (vi) a ponderação da não linearidade de interações dinâmicas entre
agentes heterogéneos.
A ambição da transformação explica que se fale mais de um programa de investigação
para uma nova economia do que propriamente de uma nova economia. O que é
promissor é a referência de Beinhocker a trabalhos de modelização já realizados
sobre a crise financeira de 2007-2008 e sobre as dimensões da bolha
especulativa que aí se desenvolveu que, organizados em diferentes pressupostos,
mostraram como teria sido diferente o comportamento dos decisores se a inércia não
tivesse impedido as novas abordagens.
Mas substituir um paradigma unitário como o da perspetiva neoclássica da economia
com um programa de investigação multidimensional tem que se lhe diga. A fortíssima
divisão do trabalho científico em economia, envolvendo as dimensões de rotura salientadas
por Beinhocker, torna extremamente difícil a coordenação entre as academias. Mas
o que é fundamental é que mais economistas sejam formados com estas dimensões alternativas
de pensamento. Talvez o economista competente de Keynes, à luz do seu
pensamento de 1924, possa emergir de novo. Mas a premência dos problemas pode
ser incompatível com o tempo longo de maturação das novas ideias.
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