quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

HAVERÁ MESMO UMA NOVA ECONOMIA?




(A economia e os economistas têm estado na berlinda em tempo de muitas interrogações, com a realidade a surpreender. Há quem pense que uma “nova economia” está em formação, não estou disso totalmente convencido. Uma boa forma de ligar o passado a este presento inquieto é começar por recordar o que Keynes em 1924 designava de um bom economista)

“O estudo da economia parece não exigir quaisquer dons especializados de elevada grandeza. Do ponto de vista intelectual, não é a economia um assunto muito fácil quando comparada com os ramos superiores da filosofia e da ciência pura? Contudo, os economistas bons ou mesmo competentes são pássaros raros. Um assunto fácil, no qual poucos atingem a excelência. O paradoxo pode ser talvez explicado se tivermos em conta que o economista-mestre tem de possuir uma rara combinação de dons. Ele deve atingir um padrão elevado em diferentes direções e deve combinar talentos que não é fácil encontrar agrupados. Ele deve ser, em alguma medida, matemático, historiador, homem de estado, filósofo. Ele tem de compreender símbolos e usar palavras. Ele deve abordar o particular em termos do geral e tocar o abstrato e o concreto no mesmo golpe de pensamento. Ele deve estudar o presente à luz do passado para poder responder aos desafios do futuro. Nenhuma dimensão da natureza humana ou das suas instituições pode ficar fora da sua abordagem. Ele tem de ser simultaneamente intencional e desinteressado; distante e incorruptível como um artista, ainda que algumas vezes devendo estar perto de ser um político.”

John Maynard Keynes, Alfred Marshall 1842-1924, The Economic Journal, Vol. 34, No. 135 (Sep., 1924), pp. 311-372

Esta citação preciosa de Keynes insere-se numa nota biográfica de Alfred Marshall e invoco-a nesta oportunidade porque ela coloca brilhantemente no centro da análise as relações entre os economistas e a economia. Estou em crer que se aplicássemos com rigor o critério apertado de Keynes para caracterizar um economista competente ficaríamos limitados a uma sociedade residual de gente considerada lunática pelos seus pares. Pode então perguntar-se como é que a degradação de padrões se reproduziu? Há uma triangulação que tem de ser invocada: economistas – teoria ou economia política – ensino da economia. Nesta triangulação há poder académico, não necessariamente escrutinado democraticamente. A inércia e o poder académico reproduzem os paradigmas e o ensino da economia molda os economistas, é assim que funciona. Como é óbvio, há margens de revolta possível. Mas o preço é elevado. A tribo expulsa os que rejeitam o comportamento iniciático. E há também o choque entre academias.

Por vezes, os desafios impostos por essa incorrigível e incómoda realidade precipitam acontecimentos e potenciam revoltas. Os decisores de várias origens e formações que tiveram de enfrentar os acontecimentos de 2007-2008 e a lenta recuperação que foi possível atingir queixaram-se amargamente da inutilidade do pensamento económico então disponível e do caráter enviesado dos resultados que as simulações dos modelos macroeconómicos existentes para atacar a situação. A erosão do universo dos economistas competentes segundo o critério de Keynes pagou-se caro. Mas, paradoxalmente, enquanto essas dificuldades colocavam os decisores em dificuldades, estou em crer que em muitas academias continuava a ensinar-se economia da mesma maneira com os mesmos conteúdos. Inércia oblige.

Mas a inércia do poder académico e o seu domínio dos mecanismos de reprodução do pensamento serão assim tão fortes a ponto de ignorar os desafios da incómoda realidade?

Economistas mais voluntaristas têm afirmado que está em curso uma transformação, não propriamente uma nova economia, una, gerando um paradigma alternativo, mas algo de mais modesto, um programa de investigação, com vários matizes, para uma nova economia. Os primeiros sinais dessa transformação foram-me transmitidos, devo reconhecê-lo aqui, pelo colega Guilherme Costa, o qual chega a estas questões mais por via da empresa do que propriamente da economia. Nomes como Eric Beinhocker, Andrew Haldane e William Lazonick foram-me sugeridos pelo Guilherme. Tenho prosseguido as minhas pesquisas e é hoje altura de acusar neste post o texto que Eric Beinhocker acaba de publicar no Evonomics: “How the Profound Changes in Economics Make Left verus Right Debates Irrelevant”.

A tese de Beinhocker é que a transformação estará a operar-se através da busca no passado de contributos para uma perspetiva diferente da economia que economistas insignes produziram, embora sem terem conseguido a inversão do rumo das coisas. A transformação em curso seria de natureza multidimensional. Envolveria: (i) a definição de novos padrões de comportamento dos indivíduos longe do pressuposto de optimizadores racionais de informação perfeita, mas antes com capacidade de aprendizagem com o erro, misturando comportamentos dedutivos e indutivos; (ii) uma nova atenção concedida às estruturas de rede indo muito para além do sistema de preços; (iii) uma nova perspetiva sobre as instituições e sobre o evolucionismo das mesmas; (iv) uma abordagem sobre a dinâmica dos desequilíbrios; (v) a consagração da inovação como um processo evolucionista e coenvolvendo tecnologia e sociedade; (vi) a ponderação da não linearidade de interações dinâmicas entre agentes heterogéneos.

A ambição da transformação explica que se fale mais de um programa de investigação para uma nova economia do que propriamente de uma nova economia. O que é promissor é a referência de Beinhocker a trabalhos de modelização já realizados sobre a crise financeira de 2007-2008 e sobre as dimensões da bolha especulativa que aí se desenvolveu que, organizados em diferentes pressupostos, mostraram como teria sido diferente o comportamento dos decisores se a inércia não tivesse impedido as novas abordagens.

Mas substituir um paradigma unitário como o da perspetiva neoclássica da economia com um programa de investigação multidimensional tem que se lhe diga. A fortíssima divisão do trabalho científico em economia, envolvendo as dimensões de rotura salientadas por Beinhocker, torna extremamente difícil a coordenação entre as academias. Mas o que é fundamental é que mais economistas sejam formados com estas dimensões alternativas de pensamento. Talvez o economista competente de Keynes, à luz do seu pensamento de 1924, possa emergir de novo. Mas a premência dos problemas pode ser incompatível com o tempo longo de maturação das novas ideias.

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