(Todos sabíamos que a política externa está a
transformar-se no nó górdio das contradições europeias. O Sr. Erdogan encarregou-se de demonstrar essa
evidência.)
O edifício europeu ameaça instabilidade por vários
lados e em várias dimensões. Temos vindo a perceber essa debilidade de muitas maneiras
e por muitas vias. No edifício há partes mais vulneráveis, outras disfarçam
melhor, mas há dimensões em que a evidência das contradições é manifesta. Uma
dessas dimensões é a da política externa. Estamos para ver se o beligerante
Trump poderá com a sua política comercial externa agressiva gerar, por reação, algum
movimento de coesão na resposta europeia. É verdade que há um representante
para a política europeia e até o lugar vai ser assumido por um político espanhol
que muito aprecio, Josep Borrel.
Mas a União Europeia assume no contexto atual
uma tal diversidade de projetos políticos, alguns dos quais nada recomendáveis
em termos democráticos, que o estabelecimento de posições comuns em termos de
geoestratégia política tende para um menor denominador comum, de facto tão
pequeno que não impõe respeito a ninguém.
Ora o mundo que temos hoje tende para uma hipocrisia
irrespirável. Um bom exemplo desse estado deplorável das coisas conta-se em
poucas palavras. Os EUA contaram com o apoio das milícias curdas no combate ao Estado
Islâmico e pelos relatos de guerra que foram sendo conhecidos os curdos foram decisivos
e mortíferos nessa guerra. Erdogan e os turcos mais próximos alimentam uma
clara obsessão contra as milícias curdas que consideram uma manifestação de
terrorismo. Os EUA fogem hoje das chamadas guerras intermináveis como gato foge
de água escaldada, tendo declarado que abandonariam proximamente esse campo da
guerra. Praticamente em cima do acontecimento o Sr. Erdogan decidiu lançar uma
ação militar contra as milícias curdas com o objetivo formalmente comunicado ao
mundo de estabelecer uma zona tampão e proteger a Turquia de possíveis
veleidades curdas, provocando mais uma penosa deslocalização de 64.000 pessoas em
apenas 24 horas, com o cortejo de horrores que esses movimentos forçados trazem
às populações mais pobres e indefesas.
A União Europeia veio a terreiro com uma tímida
tomada de posição, condenando o desplante turco, sem que alguma ameaça real e
presente o justificasse. O Sr. Erdogan deu a resposta umas horas depois, abreviadamente
com este outro desplante insultuoso: “Se a Europa continuar a considerar que a nossa
operação é uma invasão então abriremos fronteiras e a Europa terá de amanhar-se
com 3,6 milhões de imigrantes”.
Ou seja, a expressão mais clara possível de
uma chantagem. A União empurrou com a barriga a questão dos imigrantes e
refugiados e decidiu escolher um país de irrebatível democracia (como se o universo
político do Sr. Erdogan não o contradissesse) para conter tal movimento, a
troco de uma negociação que nunca ficou muito clara. O que do seu pedestal de autocrata
Erdogan quis dizer às luminárias europeias, foi que tenham juízo e respeitinho
pelas obsessões da Turquia, porque caso contrário rasgarão o acordo e a União
mergulhará o caos com mais 3,6 milhões de imigrantes.
Haverá expressão mais crua da debilidade
europeia em termos de política externa?
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