(A segunda catarata já lá vai e tal como outros colegas atingidos
pela irreversibilidade da biologia me tinham transmitido vejo tudo mais branco. Oportunidade para uma pequena reflexão sobre o software do nosso cérebro que se tivesse
sido médico me teria conduzido seguramente à neurologia e ao foco nesse prodígio
da criação humana.)
Se o país político está em transição para uma
nova legislatura eu estou também em transição para uma nova maneira de olhar o
mundo à minha volta. Dito por outras palavras, estou em adaptação para uma postura
sem óculos de graduação ao longe e apenas com lunetas para combater o peso da
biologia no envelhecimento, a chamada vista cansada. Para já é uma sensação
nova e sobretudo o branco da imagem é de facto um outro padrão visual.
Entretanto, no espaço de cerca de um mês que
separou as duas intervenções, anunciava-se o incómodo do desequilíbrio de visão
entre o olho intervencionado cuja lente introduzida corrigiria a miopia já
elevada existente e o que aguardaria a nova intervenção dependente dos óculos graduados
até aí utilizados. Estava preparado para o incómodo e lá fui aguardando a sua manifestação,
por coincidência num período de muito trabalho e de muitas horas frente ao ecrã
dos computadores a produzir.
Estranhamente
o incómodo não se manifestou e nem num minuto o trabalho foi penalizado. Alguma
coisa se teria passado e com a ajuda do amigo Paulo Rufino lá fui percebendo o
que estaria a passar-se. Grosso modo, neste espaço de um mês o que terá acontecido
é algo semelhante a esta descrição necessariamente imperfeita. Com óculos
graduados colocados, o software cerebral terá assumido o olho que necessitava
do apoio de óculos graduados, ao passo que quando os não colocava o cérebro assumia
o olho intervencionado, ou seja aquele que poderia ser mobilizado sem necessidade
de apoio de lentes exteriores já que a interior fazia esse papel e evitava a
redundância. Muito provavelmente, só essa operação de pura resolução de um
problema concreto num funcionamento ocular concreto explica que durante este
espaço de tempo o desequilíbrio entre os dois olhos não se tivesse manifestado
e não tivesse beliscado o trabalho que havia para fazer.
A
interpretação bondosa de tudo isto é que parece que o software cerebral estará ainda em boas condições para a idade. Por
outro lado, confirma-se a minha perceção de que se tivesse sido médico seria a
neurologia e o estudo do cérebro a entusiasmar-me, confirmado pelas minhas
leituras dos escritos de António Damásio e da sua mulher Hannah.
Há qui também
uma metáfora para os temas que atravessam regularmente as reflexões neste blogue.
Os equilíbrios e os estabilizadores naturais são um prodígio que deveríamos
cultivar e preservar na sociedade, na economia, nos ecossistemas. A ciência da
intervenção das políticas públicas em muitas matérias consiste, cada vez mais
estou convencido disso, em intervir preferencialmente onde não existe sucedâneo
para essa intervenção. Ou, pela negativa, evitar a todo o custo a intervenção gratuita
necessariamente com uma relação custo benefício bem menos interessante do que a
do equilíbrio dos ecossistemas. Criminosa é a intervenção que mina irreversivelmente
essa capacidade de autoregulação.
Esta sempre
foi a minha conceção da intervenção e das políticas públicas que não se
confunde com a ilusão do liberalismo mais puro, que reconhece as limitações dessas
políticas públicas mas que não as renega e trabalha sistematicamente para melhorar
a sua qualidade.
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