sexta-feira, 25 de outubro de 2019

REGRESSO ÀS LIDES



(A segunda catarata já lá vai e tal como outros colegas atingidos pela irreversibilidade da biologia me tinham transmitido vejo tudo mais branco. Oportunidade para uma pequena reflexão sobre o software do nosso cérebro que se tivesse sido médico me teria conduzido seguramente à neurologia e ao foco nesse prodígio da criação humana.)

Se o país político está em transição para uma nova legislatura eu estou também em transição para uma nova maneira de olhar o mundo à minha volta. Dito por outras palavras, estou em adaptação para uma postura sem óculos de graduação ao longe e apenas com lunetas para combater o peso da biologia no envelhecimento, a chamada vista cansada. Para já é uma sensação nova e sobretudo o branco da imagem é de facto um outro padrão visual.

Entretanto, no espaço de cerca de um mês que separou as duas intervenções, anunciava-se o incómodo do desequilíbrio de visão entre o olho intervencionado cuja lente introduzida corrigiria a miopia já elevada existente e o que aguardaria a nova intervenção dependente dos óculos graduados até aí utilizados. Estava preparado para o incómodo e lá fui aguardando a sua manifestação, por coincidência num período de muito trabalho e de muitas horas frente ao ecrã dos computadores a produzir.

Estranhamente o incómodo não se manifestou e nem num minuto o trabalho foi penalizado. Alguma coisa se teria passado e com a ajuda do amigo Paulo Rufino lá fui percebendo o que estaria a passar-se. Grosso modo, neste espaço de um mês o que terá acontecido é algo semelhante a esta descrição necessariamente imperfeita. Com óculos graduados colocados, o software cerebral terá assumido o olho que necessitava do apoio de óculos graduados, ao passo que quando os não colocava o cérebro assumia o olho intervencionado, ou seja aquele que poderia ser mobilizado sem necessidade de apoio de lentes exteriores já que a interior fazia esse papel e evitava a redundância. Muito provavelmente, só essa operação de pura resolução de um problema concreto num funcionamento ocular concreto explica que durante este espaço de tempo o desequilíbrio entre os dois olhos não se tivesse manifestado e não tivesse beliscado o trabalho que havia para fazer.

A interpretação bondosa de tudo isto é que parece que o software cerebral estará ainda em boas condições para a idade. Por outro lado, confirma-se a minha perceção de que se tivesse sido médico seria a neurologia e o estudo do cérebro a entusiasmar-me, confirmado pelas minhas leituras dos escritos de António Damásio e da sua mulher Hannah.

Há qui também uma metáfora para os temas que atravessam regularmente as reflexões neste blogue. Os equilíbrios e os estabilizadores naturais são um prodígio que deveríamos cultivar e preservar na sociedade, na economia, nos ecossistemas. A ciência da intervenção das políticas públicas em muitas matérias consiste, cada vez mais estou convencido disso, em intervir preferencialmente onde não existe sucedâneo para essa intervenção. Ou, pela negativa, evitar a todo o custo a intervenção gratuita necessariamente com uma relação custo benefício bem menos interessante do que a do equilíbrio dos ecossistemas. Criminosa é a intervenção que mina irreversivelmente essa capacidade de autoregulação.

Esta sempre foi a minha conceção da intervenção e das políticas públicas que não se confunde com a ilusão do liberalismo mais puro, que reconhece as limitações dessas políticas públicas mas que não as renega e trabalha sistematicamente para melhorar a sua qualidade.

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