domingo, 27 de outubro de 2019

O QUE EU ESPERO DO NOVO GOVERNO



(Não escondo que preferia um acordo à esquerda para a nova legislatura, mas também admito que o equilíbrio entre o Bloco e o PCP desfez-se como péssimo resultado deste último. Encaro, por isso, com alguma normalidade o exercício de um governo minoritário do PS e só a dinâmica concreta da navegação num contexto também concreto permitirá ajuizar da bondade da solução. Mas algumas expectativas podem ser desde já clarificadas, para memória futura.)

Entre as linhas de continuidade reveladas pelo Governo que acaba de tomar posse há pelo menos uma que me causa alguma alergia. Tudo indicava que o Ministério da Ciência e do Ensino Superior iria mudar até porque havia informações de que o próprio Ministro desejava voltar ao recanto protetor da academia. A dupla Manuel Heitor – Jorge Sobrinho Teixeira perdeu fôlego há muito tempo e deixou de projetar um rumo para a ciência portuguesa e para o novo impulso que o ensino superior necessita em Portugal. Ainda ultimamente, por informações que me chegam via o meu filho Hugo Figueiredo (Universidade de Aveiro), a cultura de mérito nas universidades sofreu um duro rombo. Pelos vistos, abriu-se a possibilidade de subidas na carreira académica por critérios de tempo de espera numa dada categoria, independentemente do que essas almas fizeram de concreto e de academicamente relevante nesses mesmos dez anos. Assim se “estimula” quem porfia no trabalho académico sem menosprezar a qualidade de ensino e de contacto com os alunos, o que mais uma vez prova a espantosa capacidade endógena da instituição universitária se autoproteger, de resistir aos critérios de mérito, ou seja em mais uma gloriosa manifestação do corporativismo profissional que só serve os menos competentes. Como a universidade portuguesa precisa de uma cultura de mérito, seja na via científica em sentido estrito, seja na via da transferência de conhecimento para o meio empresarial e contributo para o desempenho inovação da sociedade e da economia portuguesa.

O facto da política científica ter descoberto nos Fundos Estruturais uma fórmula de financiamento, simulando em muitos casos que se estão a aproximar das necessidades das empresas, mas sempre desconfiando da capacidade destas últimas para absorver esse conhecimento, tem contribuído para a não libertação de recursos do orçamento nacional para financiar a política de investigação científica. Tenho dúvidas de que a dimensão do país permita grandes veleidades de banda larga no financiamento da ciência em Portugal. Mas admito que os portugueses possam querer ter até alguns domínios de ciência básica, mas isso tem de ser escrutinado democraticamente e perceber que tal opção implica escolhas num contexto de manta curta. A história recente dos Laboratórios Colaborativos constituídos em concurso aberto sem que estivessem definidos previamente recursos orçamentais para os financiar no primeiro período da sua implementação é uma ilustração cabal da fantochada a que se chegou em termos de escolhas de financiamento para a ciência. Tanto mais fantochada quanto o Ministro Manuel Heitor “mendigou” junto dos Programas Operacionais Regionais o financiamento para esses COLABS. E assim se gere a ciência em Portugal sem que os modelos de cultura de mérito permitam ao menos um interface mais fluido com as políticas de inovação.

Dificilmente a dupla Manuel Heitor-Jorge Sobrinho Teixeira mostrará energia renovada para assegurar o impulso necessário a estas escolhas. E nem sequer a possibilidade dos Institutos Politécnicos mais estruturados e com melhor estrutura de qualificações concederem doutoramentos ainda avançou sem haver razões para tal a não ser a inércia da instituição universitária.

Entre as novidades tenho expectativas quanto ao papel da Alexandra Leitão em termos de Modernização do Estado e da Administração Pública. O melhor cartão-de-visita da nova Ministra foi o remoque de Catarina Martins comentando a ascensão da antiga secretária de Estado na Educação e responsável pela negociação com os sindicatos. Se para Catarina Martins é uma preocupação para mim é um sossego. Gosto de ver gente preparada e rigorosa a defender os interesses do Estado e não um banana qualquer com medo das investidas de líderes sindicais como Mário Nogueira a ceder nas questões mais essenciais. Mas a designação do Ministério é ela própria exigente. Tenho para mim que a reforma de 1 milhão de dólares é mesmo a do Estado e espero que de uma vez por todas se compreenda o estado da arte em matéria de descentralização. Jorge Botelho é o secretário de Estado da Descentralização e da Administração Local, depois da sua experiência como Presidente da Câmara de Tavira e da AMAL, em cuja última qualidade tive oportunidade de interagir em termos de trabalho profissional. Com grande dinamismo, Jorge Botelho é o que eu costumo chamar um “maneirinho” da política, sabe manobrar e estou com alguma curiosidade como vai ser o seu estilo de governação. O Algarve ganha de repente três secretários de Estado, Jorge Botelho, Jamila Madeira na Saúde e José Apolinário no Mar (pescas). Não se isto contribuirá para um maior peso político da região que o tem vindo a perder a uma velocidade estonteante.

Finalmente, para não alongar muito o post de hoje e já como expressei as minhas expectativas quanto ao novo Ministério da Coesão Territorial em post anterior, termino com algumas referências à continuidade do Ministério da Economia. Creio que é uma patetice das grandes admitir que vamos assistir a um reforço do poder do Ministério apenas na sequência da subida de Pedro Siza Vieira e amigo de António Costa. O Ministério da Economia é daqueles cuja “accountability” me intriga seriamente, ou a sua ação se desenvolve em domínios que não chegam ao escrutínio público (o que intriga ainda mais) ou então a sua ação em termos de custo-benefício deixa muito a desejar. Uma coisa, entretanto, precisa de ser corrigida, o entendimento do Ministério quanto à importância de uma linha firme e clara de articulação com o Ministério da Ciência (principalmente a FCT) em matérias de inovação, designadamente do segundo ciclo de políticas de inovação estruturadas em torno das estratégias (nacional e regionais) de especialização inteligente (as agora S3, Smart Specialisation Strategies) e do modo como o financiamento da Agência Nacional de Inovação (ANI) necessita de ser clarificado. Receio que o estardalhaço mediático do slogan da economia 4.0 e da transformação digital ofusque a ação do Ministério.

E, já agora, o regresso bem preparado à política de clusters seria uma boa malha. Aliás, persiste o mistério do apagamento desse instrumento de política, sobretudo com gente muito preparada a passar pelo Ministério nos últimos tempos.

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