domingo, 13 de outubro de 2019

O PREGADOR



(As pequenas crónicas de Daniel Bessa na primeira página do Expresso Economia assemelham-se cada vez mais às de um pregador que vai destilando as suas obsessões, estáveis e formadas a partir de um certo momento do tempo, sem que se vislumbre incorporação de novo conhecimento relevante que justifique a renovação de presença no espaço que lhe é concedido. O cronista continua lamentavelmente preso a velhas dicotomias políticos, sem acompanhar o fervilhar de novas dicotomias que o pensamento económico renovado vai propondo à nossa reflexão.)

Talvez traumatizado por tempos idos (os da FEP do pós 1974) em que esteve próximo do PCP e pela sua experiência de governação com o PS, Daniel Bessa tem prosseguido com certa coerência (há que o reconhecer) a sua cruzada contra os ventos de uma certa esquerda, despesista, longe do universo empresarial, com a invocação do Estado sempre na ponta da língua para a resolução de qualquer problema nacional. Está no seu direito e quem sou eu para lhe cercear essa liberdade de expressão. O problema é a cristalização de tal pensamento em torno de um discurso de uma nota só, ainda por cima sem a elegância de um Tom Jobim, para seguir tal orientação. No Expresso Economia deste fim-de-semana lá regressou a mesma dicotomia desta vez na variante da “obsessão pelo défice”. Bastaria que o cronista prestasse melhor atenção às suas próprias palavras para poder, se o entendesse, ir por outros rumos, abandonando a cristalização das suas obsessões. Lá no meio do que ele considera uma alternativa à missa da crítica da “obsessão pelo défice” a questão da produtividade passa de repente pelo argumento mas sem se deter no mesmo e, por isso, incapaz de explorar todas as novas nuances que essa evidência que salta aos olhos de um qualquer analista da economia portuguesa com um mínimo de agilidade.

O cronista não é capaz de perceber que uma das grandes clivagens hoje ainda existentes entre as categorias abstratas da “esquerda” e da “direita” (que cada vez mais têm de ser declinadas em projetos políticos concretos para se compreender as clivagens mas também os traços mais “fuzzy”) é a questão da desigualdade. Sim, de facto, não podemos ignorar que DB faz parte dos que pensam que, de modo mais ou menos pio consoante o estilo e as convicções, a desigualdade poderá apenas ser atenuada através de uma sequência que coloca o crescimento económico e o aumento da produtividade como motores (“Gerar mais rendimento, distribuído de forma mais solidária” nas palavras de DB). Ora, uma das dicotomias e clivagens do nosso tempo mais moderno em termos de pensamento económico considera a desigualdade como um constrangimento estrutural do próprio sistema, com uma carga diversificada de penalizações incluindo os do próprio crescimento a longo prazo.

DB certamente não tem acompanhado os escritos de Lawrence Summers sobre a matéria ou talvez não lhe interesse dar o flanco. Poderia, por exemplo, também, ler o testemunho que a economista Heather Boushey, CEO do Washngton Center for Equitable Growth, prestou num grupo de trabalho animado pelo Governador da Califórnia Gavin Newson no âmbito de uma Comissão para o Futuro do Trabalho (link aqui).

Destaco do seu testemunho a explicitação dos constrangimentos que em seu entender a desigualdade provoca no crescimento económico:
  •   "Obstruindo a oferta de pessoas e de ideias à economia e limitando as oportunidades para os que já não estão no topo, o que tende a tornar o crescimento da produtividade mais lento ao longo do tempo;
  • ·   Subvertendo as instituições que gerem o mercado, tornando o nosso sistema político inefetivo e o nosso mercado de trabalho disfuncional;
  • ·   Distorcendo a procura através dos seus efeitos sobre o consumo e sobre o investimento, o que penaliza e destabiliza o crescimento do produto a curto e a longo prazo”.
E poderíamos falar também da consequência de tudo isso em termos de formação e de concentração de poderes de monopólio na economia em geral e no mercado de trabalho em particular, com a formação de verdadeiros monopsónios da procura de trabalho com as conhecidas consequências em termos de uma progressão de salários bem abaixo do crescimento da produtividade.

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