sexta-feira, 27 de março de 2020

E LA MACROECONOMIA PUR SI MUOVE?



(Sabemos que os grandes momentos disruptivos da história económica foram (pre)contextos pertinentes para grandes abanões dos paradigmas que dominavam o pensamento macroeconómico nessas alturas. Depois dos “mixed feelings”e dos sinais contraditórios gerados pelo após Grande Recessão de 2007-2008, é natural que pensemos que, face a um outro abanão após uma década e picos depois, nos interroguemos se é desta.)

A Grande Depressão de 1929-1930 e a crise petrolífera dos anos 70 com a estagflação que originou geraram, respetivamente, uma revolução macroeconómica, a keynesiana, e uma contrarrevolução, a crise do keynesianismo, a tentativa de desvalorização da política económica, o advento dos modelos de expectativas racionais e o retorno aos fundamentos microeconómicos da macro. Não é meu objetivo no dia de hoje discutir e explicar as designações de revolução e de contrarrevolução. Basta-me apenas reconhecer que se tratou de grandes abanões com profundas implicações na formação dos economistas e na gestão macroeconómica. Tudo indica que a crise pandémica que vivemos, sobretudo quando entendida no quadro de precários equilíbrios mundiais e da emergência agressiva de populismos nacionalistas, poderá gerar, pelo menos, uma nova Grande Recessão. Nessas condições, é natural que se imagine ser possível a ocorrência de um novo abanão sobre o pensamento económico. A pressão de 2007-2008 está ainda fresca mesmo que as suas consequências em termos de pensamento económico não tenham sido encorajadoras.

Ora todos os elementos disponíveis que temos apontam para que as proporções da crise económica que se instalará por força da abordagem sanitária sejam bem superiores às de 2007-2008. Estou a escrevê-lo ainda sem a segurança de que o choque sobre a produção e a procura mundial não se repercuta numa nova crise financeira. Vários economistas já se pronunciaram sobre essa dimensão da crise. É o caso de Carmen Reinhardt, companheira habitual de escritos de Kenneth Rogoff, que não hesita em regressar ao tema do “desta vez é mesmo diferente” depois de ambos o terem feito para a crise de 2007-2008 numa obra abundantemente mobilizada para este blogue, “This Time Is Different: Eight Centuries of Financial Folly”, publicada em 2011.

A economista americana conclui a sua última crónica no Project Syndicate de uma forma simultaneamente convincente e contundente (link aqui):

As economias avançadas e emergentes não sofreram desde 1930 uma combinação de quebra do comércio global, preços globais rebaixados das commodities e uma recessão sincronizada como a que . É verdade que as origens do atual choque são substancialmente diferentes, assim como o tem de ser a resposta em termos de política. Mas as políticas de isolamento e de distanciamento social que estão a salvar vidas implicam também um enorme custo económico. Uma emergência sanitária pode transformar-se numa crise financeira. Claramente, é tempo de “o que for preciso fazer” para assegurar uma operação de grande escala e fora da caixa em termos de política fiscal e monetária”.

A convicção de Reinhardt é tanto mais relevante quanto sabemos que, com a exceção conhecida da Suécia (dá para pensar a diferença em relação aos restantes países escandinavos da Dinamarca, Finlândia e Noruega), que optou por modalidades de confinamento bem mais suaves, praticamente todos os países, embora em tempos diferentes, optaram por medidas musculadas e de emergência nessa matéria. A ganância económica das pressões sobre Trump para libertar a economia americana das restrições de abertura e movimentação quando os EUA caminham a grande velocidade para se tornarem o novo epicentro da pandemia equivale a uma inversão de valores que não é, saudemo-lo, dominante (vejam a forma como Lawrence Summers denuncia essa miopia, link aqui)). Quer isto significar que a bem da emergência sanitária a dimensão do impacto recessivo será enorme, confirmando a ideia da intervenção em grande escala em matéria de política fiscal e monetária sugerida por Reinhardt.

É nessa linha também que Mario Draghi assinou uma contundente crónica-apelo no Financial Times (link aqui), usando até o termo de acontecimento com proporções potencialmente bíblicas. O ex-governador do BCE ousa até, talvez ingenuamente, situar a Europa em boas condições para intervir em conformidade:

“(…) De certo modo, a Europa está bem equipada para intervir neste choque extraordinário. Tem uma estrutura financeira granular capaz de canalizar fundos a todas as partes da economia que deles necessitam. Tem um setor público forte capaz de coordenar uma resposta política rápida. A rapidez é absolutamente essencial para ser eficaz.”
Parece que desta vez os macroeconomistas mais influentes não têm dúvidas quanto à necessidade de retorno à ideia de intervenção em grande escala. Outra coisa bem diferente será o modo como a decisão política acolherá esta aparente unanimidade. Uma intervenção em grande escala e de mobilização rápida exige capacidade de coordenação. O caso europeu em que o regresso ao tema do endividamento e da emissão de dívida comum na União Europeia faz regressar todos os fantasmas da desconfiança moral quanto aos povos do sul, confirmando que o luteranismo alemão e o calvinismo holandês se apressam de novo a castigar as nossas almas de pecadores pelo consumo. Já não há paciência e humildade europeia que aguente esta arrogância pedante.

No caso europeu desenha-se um horizonte negro. Os países vão poder contornar as regras do pacto de estabilidade mas sem rede e os mais endividados correm o risco de comer o pão que o diabo amassou acaso não se concretize a ideia da emissão de dívida comum (os corona bonds) para esta aflição. Começo a ficar com a estranha intuição de que ainda vou assistir em vida à destruição do edifício europeu.

Seria de facto uma trágica contradição confirmar que finalmente a macroeconomia parece mover-se em direção ao realismo e que os fatores morais da pretensa superioridade do Norte inquinassem o acolhimento pela política desse movimento.

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