(Sabemos que os grandes momentos disruptivos da história
económica foram (pre)contextos pertinentes para grandes abanões dos paradigmas
que dominavam o pensamento macroeconómico nessas alturas. Depois dos “mixed feelings”e dos sinais contraditórios gerados pelo após
Grande Recessão de 2007-2008, é natural que pensemos que, face a um outro
abanão após uma década e picos depois, nos interroguemos se é desta.)
A Grande Depressão de
1929-1930 e a crise petrolífera dos anos 70 com a estagflação que originou
geraram, respetivamente, uma revolução macroeconómica, a keynesiana, e uma
contrarrevolução, a crise do keynesianismo, a tentativa de desvalorização da
política económica, o advento dos modelos de expectativas racionais e o retorno
aos fundamentos microeconómicos da macro. Não é meu objetivo no dia de hoje
discutir e explicar as designações de revolução e de contrarrevolução. Basta-me
apenas reconhecer que se tratou de grandes abanões com profundas implicações na
formação dos economistas e na gestão macroeconómica. Tudo indica que a crise
pandémica que vivemos, sobretudo quando entendida no quadro de precários
equilíbrios mundiais e da emergência agressiva de populismos nacionalistas, poderá
gerar, pelo menos, uma nova Grande Recessão. Nessas condições, é natural que se
imagine ser possível a ocorrência de um novo abanão sobre o pensamento
económico. A pressão de 2007-2008 está ainda fresca mesmo que as suas
consequências em termos de pensamento económico não tenham sido encorajadoras.
Ora todos os
elementos disponíveis que temos apontam para que as proporções da crise
económica que se instalará por força da abordagem sanitária sejam bem
superiores às de 2007-2008. Estou a escrevê-lo ainda sem a segurança de que o
choque sobre a produção e a procura mundial não se repercuta numa nova crise
financeira. Vários economistas já se pronunciaram sobre essa dimensão da crise.
É o caso de Carmen Reinhardt, companheira habitual de escritos de Kenneth
Rogoff, que não hesita em regressar ao tema do “desta vez é mesmo diferente”
depois de ambos o terem feito para a crise de 2007-2008 numa obra abundantemente
mobilizada para este blogue, “This Time Is
Different: Eight Centuries of Financial Folly”, publicada em
2011.
A economista
americana conclui a sua última crónica no Project Syndicate de uma forma
simultaneamente convincente e contundente (link aqui):
“As economias
avançadas e emergentes não sofreram desde 1930 uma combinação de quebra do
comércio global, preços globais rebaixados das commodities e uma recessão
sincronizada como a que . É verdade que as origens do atual choque são
substancialmente diferentes, assim como o tem de ser a resposta em termos de
política. Mas as políticas de isolamento e de distanciamento social que estão a
salvar vidas implicam também um enorme custo económico. Uma emergência sanitária
pode transformar-se numa crise financeira. Claramente, é tempo de “o que for
preciso fazer” para assegurar uma operação de grande escala e fora da caixa em
termos de política fiscal e monetária”.
A convicção de
Reinhardt é tanto mais relevante quanto sabemos que, com a exceção conhecida da
Suécia (dá para pensar a diferença em relação aos restantes países escandinavos
da Dinamarca, Finlândia e Noruega), que optou por modalidades de confinamento
bem mais suaves, praticamente todos os países, embora em tempos diferentes, optaram
por medidas musculadas e de emergência nessa matéria. A ganância económica das
pressões sobre Trump para libertar a economia americana das restrições de
abertura e movimentação quando os EUA caminham a grande velocidade para se
tornarem o novo epicentro da pandemia equivale a uma inversão de valores que
não é, saudemo-lo, dominante (vejam a forma como Lawrence Summers denuncia essa
miopia, link aqui)). Quer isto significar que a bem da emergência sanitária a
dimensão do impacto recessivo será enorme, confirmando a ideia da intervenção
em grande escala em matéria de política fiscal e monetária sugerida por
Reinhardt.
É nessa linha também
que Mario Draghi assinou uma contundente crónica-apelo no Financial Times (link aqui), usando até o termo de acontecimento com proporções potencialmente
bíblicas. O ex-governador do BCE ousa até, talvez ingenuamente, situar a Europa
em boas condições para intervir em conformidade:
“(…) De
certo modo, a Europa está bem equipada para intervir neste choque
extraordinário. Tem uma estrutura financeira granular capaz de canalizar fundos
a todas as partes da economia que deles necessitam. Tem um setor público forte
capaz de coordenar uma resposta política rápida. A rapidez é absolutamente
essencial para ser eficaz.”
Parece que desta vez
os macroeconomistas mais influentes não têm dúvidas quanto à necessidade de
retorno à ideia de intervenção em grande escala. Outra coisa bem diferente será
o modo como a decisão política acolherá esta aparente unanimidade. Uma
intervenção em grande escala e de mobilização rápida exige capacidade de
coordenação. O caso europeu em que o regresso ao tema do endividamento e da
emissão de dívida comum na União Europeia faz regressar todos os fantasmas da
desconfiança moral quanto aos povos do sul, confirmando que o luteranismo
alemão e o calvinismo holandês se apressam de novo a castigar as nossas almas
de pecadores pelo consumo. Já não há paciência e humildade europeia que aguente
esta arrogância pedante.
No caso europeu
desenha-se um horizonte negro. Os países vão poder contornar as regras do pacto
de estabilidade mas sem rede e os mais endividados correm o risco de comer o
pão que o diabo amassou acaso não se concretize a ideia da emissão de dívida
comum (os corona bonds) para esta aflição. Começo a ficar com a estranha
intuição de que ainda vou assistir em vida à destruição do edifício europeu.
Seria de facto uma
trágica contradição confirmar que finalmente a macroeconomia parece mover-se em
direção ao realismo e que os fatores morais da pretensa superioridade do Norte
inquinassem o acolhimento pela política desse movimento.
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