quinta-feira, 26 de março de 2020

TESTEMUNHOS (3)



(A valorização do conhecimento parece finalmente começar a atravessar a opinião pública mais esclarecida e a favorecer o aumento de confiança das populações. É um efeito colateral positivo das privações a que somos submetidos. Hoje é a vez de dar a Voz a um grande escritor espanhol, António Muñoz Molina, que faz parte das minhas leituras diárias desde há longo tempo.)

O regresso do conhecimento

Pela primeira vez desde que temos memória as vozes que prevalecem na vida pública espanhola são as pessoas que sabem, pela primeira vez assistimos à celebração aberta do conhecimento e da experiência, e ao protagonismo merecido e até agora inédito desses profissionais de campos diversos cuja combinação de qualificação máxima e de coragem civil suporta sempre o mecanismo complicado de toda a vida social. Nos programas de televisão onde até agora reinavam exclusivamente comentadores especializados em opinar sobre qualquer coisa em qualquer momento, aparecem agora médicos de família, epidemiologistas, funcionários públicos que enfrentam diariamente a enfermidade que tudo atravessa e que a qualquer momento os pode atacar a eles próprios.
Todas as tardes, pelas oito, nas ruas vazias, rebenta como uma tormenta súbita um aplauso dirigido não a demagogos do embuste mas antes aos trabalhadores da saúde, que até ontem cumpriam a sua tarefa pressionados pelos cortes contínuos, a falta de meios, o desdém por vezes agressivo de utentes caprichosos ou queixinhas. Agora, com exceção nos redutos conhecidos, não escutamos slogans, nem orientações de campanha desenhadas por publicitários, nem banalidades cunhadas por essa espécie de gurus ou aprendizes de bruxos que desenham estratégias de “comunicação” e os que por cá também, que remédio, já se chama spin doctors: engana tolos, trapaceiros, vendedores de ilusões”.

Será que é desta que vai ser erradicada aquela prática de reunir os “sábios” apenas para momentos pré-eleitorais e que será iniciada um novo relacionamento entre conhecimento e política?

Não estou seguro que isso aconteça, sobretudo porque pode haver o risco de se imaginar que a decisão política não é necessária. Ambos os conhecimentos são fundamentais, o da ciência, mais analítico e o da política, mais sintético. Com autonomia mas com capacidade de compreender o outro. Aparentemente tão fácil, mas bem difícil.

Mas os homens da ciência também têm de sair da toca e das torres de marfim. Estão a fazê-lo e precisamos disso. Mas no interior da própria ciência há tocas e torres de marfim que penalizam e inibem a fertilização cruzada dos conhecimentos. Nada será como dantes?

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