(A leitura matutina do ÍPSILON em dia de transição muito
lenta para a inatividade (as sextas-feiras em que antecipo o fim de semana)
trouxe-me uma entrevista preciosa com um dos últimos intelectuais como os
entendo, Jorge Silva Melo. O motivo é a passagem da
sua curta obra fílmica pela Cinemateca na Barata Salgueiro e sobretudo a sua
Carta Branca de programação a seu gosto que a prestigiada instituição lhe concedeu
no mês de março.)
Quando todas as
manhãs o António Costa Santos vai desfiando no programa da manhã da Antena 2 de
Paulo Alves Guerra o que vale a pena ver nesse dia, com sempre com alguma
descentralização, que é de saudar, o que me faz recorrentemente invejar mais os
lisboetas é a programação contínua da Cinemateca. Imagino que se vivesse por aquelas
bandas tenderia a enfiar-me horas a fio nas salas da Barata Salgueiro, tal é o
seu contributo vasto e valioso para o conhecimento da história do cinema. Um
destes dias, o desfiar dessa programação já me tinha alertado para a Carta
Branca de Jorge Silva Melo e nas suas escolhas identifica-se rapidamente a sua
maneira muito peculiar de viver a história do cinema.
A entrevista de hoje
no ÍPSILON (link aqui) é preciosa para quem frequentar a programação proposta por JSM, já
que é um complemento precioso da interpretação das escolhas que são aí
plasmadas. Como isso não está ao meu alcance, olhei para a entrevista com um
outro olhar. Já se percebeu que tenho vindo, à medida que envelheço, a reforçar
o meu fascínio pelas diferentes formas artísticas de registo do que eu chamo
declínio com dignidade. Não é algo fácil de explicar. Não se trata de uma forma
mórbida de resistência à mudança, de valorização gratuita do velho em
detrimento do novo. Não é também uma forma velada de saudosismo serôdio. É pelo
contrário o meu interesse pelo tempo longo e pelas mudanças que ele veicula e
nos traz, regra geral sempre com benefício material. É que nesse tempo longo há
sempre dois olhares possíveis. O que segue a tendência e observa o
desenvolvimento que lhe vem associado. E o que se concentra nos tempos das
mudanças, os que as vivem por dentro, não através do caráter abstrato de uma
série. E neste olhar, que aprecio particularmente, sou sempre sensível aos que
as vivem do ponto de vista do declínio com dignidade.
Tenho vindo a
acumular registos diversos desse olhar. É o caso das cidades que vivem essa
mutação. Dois exemplos para compreenderem o meu ponto. Cidades tão diferentes
como Palermo e Portalegre oferecem-me essa visão do declínio firme e digno.
Muito provavelmente o Corina vírus inviabilizará uma viagem programada à
Sicília e já tinha preparado os meus sensores para viver de novo essa
característica ímpar da cidade siciliana. Mas há também os registos de famílias
que vivem esse declínio, naturalmente, com o seu porte intacto, compreendendo
que os tempos vão ser outros, que fazem parte da mutação social. Mas poderia
dizer o mesmo da evolução dos artefactos culturais, das condições de fruição da
arte nas suas diferentes formas e expressões.
A entrevista de JSM
trouxe-me esse registo do ponto de vista da fruição do cinema e ele transmite
essa perceção através das suas escolhas. Um excerto para vos dar conta do meu
olhar sobre a entrevista: “(…) Nota-se também
a nostalgia do cinema como grande arte popular – o cinema era uma arte
popular e fomos nós que demos cabo
disso. Nada como ver a Rapariga da Mala (Zurlini) no Condes com a sala cheia.
Isso já não somos capazes de fazer. Tocamos os intelectuais das salas de arte e
ensaio, tocamos os adolescentes com os James Bonds, mas não conseguimos todos
ao mesmo tempo como uma história como aquela. Mas isso foi quase só na Itália e
nos EUA. Os dois grandes cinemas do mundo foram o italiano e o americano”.
Sim, como me recordo não das salas cheias do Condes, mas de ver o filme do
Valério Zurlini e como me apetece revê-lo depois desta invocação. O mesmo poderia
ser dito sobre a sensibilidade de JSM quanto a um outro filme que também me
impressionou fortemente, o CLOSE UP do iraniano Kiarostami.
Em registo similar, o
modo como JSM fala de dois personagens cruciais do cinema português e dos seus
contactos com as mesmas é também precioso para compreendermos a sociabilidade das
nossas atmosferas culturais. Referindo-se a Paulo Rocha e Fernando Lopes, vejam
este excerto: “(…) Era uma pessoa (Paulo
Rocha) com que me entendia muito bem, conversávamos muito. Faz-me muita falta o
Paulo, com a sua matreirice. Com o Lopes não tive o mesmo contacto, mas era
outro tipo de pessoa, mais fácil. Era o charme da malandrice lisboeta, o Paulo
era mais complexo, era do Porto”.
São estes elementos a
que chamo registos preciosos para compreender à minha maneira o tempo longo.
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