sexta-feira, 6 de março de 2020

A NOSTALGIA DE JORGE SILVA MELO



(A leitura matutina do ÍPSILON em dia de transição muito lenta para a inatividade (as sextas-feiras em que antecipo o fim de semana) trouxe-me uma entrevista preciosa com um dos últimos intelectuais como os entendo, Jorge Silva Melo. O motivo é a passagem da sua curta obra fílmica pela Cinemateca na Barata Salgueiro e sobretudo a sua Carta Branca de programação a seu gosto que a prestigiada instituição lhe concedeu no mês de março.)

Quando todas as manhãs o António Costa Santos vai desfiando no programa da manhã da Antena 2 de Paulo Alves Guerra o que vale a pena ver nesse dia, com sempre com alguma descentralização, que é de saudar, o que me faz recorrentemente invejar mais os lisboetas é a programação contínua da Cinemateca. Imagino que se vivesse por aquelas bandas tenderia a enfiar-me horas a fio nas salas da Barata Salgueiro, tal é o seu contributo vasto e valioso para o conhecimento da história do cinema. Um destes dias, o desfiar dessa programação já me tinha alertado para a Carta Branca de Jorge Silva Melo e nas suas escolhas identifica-se rapidamente a sua maneira muito peculiar de viver a história do cinema.

A entrevista de hoje no ÍPSILON (link aqui) é preciosa para quem frequentar a programação proposta por JSM, já que é um complemento precioso da interpretação das escolhas que são aí plasmadas. Como isso não está ao meu alcance, olhei para a entrevista com um outro olhar. Já se percebeu que tenho vindo, à medida que envelheço, a reforçar o meu fascínio pelas diferentes formas artísticas de registo do que eu chamo declínio com dignidade. Não é algo fácil de explicar. Não se trata de uma forma mórbida de resistência à mudança, de valorização gratuita do velho em detrimento do novo. Não é também uma forma velada de saudosismo serôdio. É pelo contrário o meu interesse pelo tempo longo e pelas mudanças que ele veicula e nos traz, regra geral sempre com benefício material. É que nesse tempo longo há sempre dois olhares possíveis. O que segue a tendência e observa o desenvolvimento que lhe vem associado. E o que se concentra nos tempos das mudanças, os que as vivem por dentro, não através do caráter abstrato de uma série. E neste olhar, que aprecio particularmente, sou sempre sensível aos que as vivem do ponto de vista do declínio com dignidade.

Tenho vindo a acumular registos diversos desse olhar. É o caso das cidades que vivem essa mutação. Dois exemplos para compreenderem o meu ponto. Cidades tão diferentes como Palermo e Portalegre oferecem-me essa visão do declínio firme e digno. Muito provavelmente o Corina vírus inviabilizará uma viagem programada à Sicília e já tinha preparado os meus sensores para viver de novo essa característica ímpar da cidade siciliana. Mas há também os registos de famílias que vivem esse declínio, naturalmente, com o seu porte intacto, compreendendo que os tempos vão ser outros, que fazem parte da mutação social. Mas poderia dizer o mesmo da evolução dos artefactos culturais, das condições de fruição da arte nas suas diferentes formas e expressões.

A entrevista de JSM trouxe-me esse registo do ponto de vista da fruição do cinema e ele transmite essa perceção através das suas escolhas. Um excerto para vos dar conta do meu olhar sobre a entrevista: “(…) Nota-se também a nostalgia do cinema como grande arte popular – o cinema era uma arte popular  e fomos nós que demos cabo disso. Nada como ver a Rapariga da Mala (Zurlini) no Condes com a sala cheia. Isso já não somos capazes de fazer. Tocamos os intelectuais das salas de arte e ensaio, tocamos os adolescentes com os James Bonds, mas não conseguimos todos ao mesmo tempo como uma história como aquela. Mas isso foi quase só na Itália e nos EUA. Os dois grandes cinemas do mundo foram o italiano e o americano”. Sim, como me recordo não das salas cheias do Condes, mas de ver o filme do Valério Zurlini e como me apetece revê-lo depois desta invocação. O mesmo poderia ser dito sobre a sensibilidade de JSM quanto a um outro filme que também me impressionou fortemente, o CLOSE UP do iraniano Kiarostami.

Em registo similar, o modo como JSM fala de dois personagens cruciais do cinema português e dos seus contactos com as mesmas é também precioso para compreendermos a sociabilidade das nossas atmosferas culturais. Referindo-se a Paulo Rocha e Fernando Lopes, vejam este excerto: “(…) Era uma pessoa (Paulo Rocha) com que me entendia muito bem, conversávamos muito. Faz-me muita falta o Paulo, com a sua matreirice. Com o Lopes não tive o mesmo contacto, mas era outro tipo de pessoa, mais fácil. Era o charme da malandrice lisboeta, o Paulo era mais complexo, era do Porto”.

São estes elementos a que chamo registos preciosos para compreender à minha maneira o tempo longo.

Sem comentários:

Enviar um comentário