(A dimensão e alcance da tragédia italiana continuam a
perturbar-nos e, irremediavelmente, a despertar todas as comparações possíveis,
das mais mórbidas às induzidas pelas diferentes sensibilidades matemáticas. Simultaneamente,
a nível da União Europeia uma decisão importante e simbólica foi tomada. Foi e ainda bem, mas seria necessário um contexto desta gravidade para a
celebrarmos?)
Os números diários de
Itália agitam brutalmente as nossas inquietações. Não há paninhos quentes que
suavizem esse impacto que a informação global nos vai trazendo. As incidências
epidemiológicas não se observam em simultâneo. Estamos em diferentes pontos das
curvas epidemiológicas e daí que as comparações sejam inevitáveis. O que
justifica uma pandemia tão agressiva num país que amamos por mais angústias que
a sua deriva política e populista nos tenha angustiado nos últimos anos?
Do que tenho lido há
duas razões (não médicas ou clínicas, porque ainda não li nada de robusto
quanto às modalidades ou estirpes com que o vírus se apresentou em Itália) que
podem estar a justificar a extensão pandémica.
A primeira prende-se com
o facto do surto ter irrompido a partir das regiões mais ricas de Itália.
Existe abundante evidência de que, mal a gravidade do surto foi pressentida e em
jeito de antecipação dos confinamentos sucessivamente mais graves houve uma
massa significativa de população que zarpou das suas residências para as suas segundas
casas ou para buscar a solidariedade de famílias residentes noutras regiões
italianas. Se o epicentro tivesse acontecido numa região mais pobre provavelmente
essa disseminação não teria acontecido.
A segunda razão surge
a partir de testemunhos de população italiana, segundo os quais as regras de distanciamento
e isolamento social foram deficientemente cumpridas já depois dos confinamentos
e quarentenas mais graves, num paradoxo identitário do modo de convivência italiano
que baixa a guarda perante uma ameaça desta natureza.
São duas razões de
peso, de natureza socioeconómica. Provavelmente, teremos de acrescentar uma
terceira que decorre do nível baixo de despistagem da presença do vírus e que terá
conduzido a comportamentos inconscientes e de risco antes dos confinamentos.
Ao mesmo tempo que a tragédia
italiana nos impacta brutalmente, para as bandas de Bruxelas foi tomada uma
decisão histórica. Foi finalmente suspensa a regra associada ao chamado tratado
orçamental. Tal gradação em poucos dias foi visível também aqui neste caso.
Passamos rapidamente do desinteresse inicial de Lagarde, à decisão de
determinadas despesas não contarem para o défice e finalmente para a decisão
extrema de haver uma moratória de controlo de défices, deixa de existir durante
um determinado tempo. Mas mesmo assim, a supressão dos limites do défice pode
conduzir a um salve-se quem puder, com os países a recorrer a endividamento na
medida das suas possibilidades de acesso ao mercado. O que pode gerar sérios
problemas futuros, se a Alemanha continuar a não aceitar a partilha de risco. E
não esqueçamos que a tragédia italiana acontece numa economia com uma dívida
colossal.
Cheira-me que
infelizmente ainda iremos voltar a falar destas coisas e não será pelas
melhores razões.
Não posso deixar de
pensar quanto sofrimento e penosidade foi necessário aguentar para que a
chamada regra dourada do equilíbrio orçamental deixasse de ter sentido e ser
suspensa. E talvez a grande razão para isso seja a própria natureza da pandemia.
Ou seja, em palavras talvez cruéis, na crise das dívidas soberanas houve quem
beneficiasse claramente da penosidade dos outros e salvo os seus ativos a
tempo. Agora, a penosidade toca a todos, mas não estamos todos nas mesmas
situações para a aguentar.
(Correção de gralhas em 21.03.2020)
(Correção de gralhas em 21.03.2020)
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