quarta-feira, 18 de março de 2020

LIDERANÇAS E PARADIGMAS

(Com a devida vénia ao Financial Times)

(Em tempos difíceis como os que vivemos vão emergir novas e velhas questões, sujeitas a um outro contexto de experimentação. Para já posso mencionar duas que serão tremendamente postas à prova, as lideranças políticas e os paradigmas económicos de combate às recessões macroeconómicas, com maior interação entre si do que se poderia pensar.)

Certamente que todos já tiveram a sensação, noutros contextos de acalmia, que poderíamos passar bem sem governos proativos. É o que se passa com as longas hibernações pós-eleitorais de formação de novos governos, que exigem coligações e novas parcerias políticas cuja génese é demorada e dependente de negociações complexas. Nos últimos tempos, essa tendência tem-se acentuado na sequência da fragmentação política que tem reduzido maiorias absolutas e destruído a habitual polarização política observada em alguns países. Vários exemplos têm ajudado nos tempos mais recentes a compreender a mudança a que me refiro. São os casos da Bélgica (useira e vezeira neste tipo de dificuldade), a longa formação dos últimos governos de coligação na Alemanha, o caso da Espanha (com sucessivos atos eleitorais), até Israel que persiste na saga de constituir governo e poderíamos juntar outros casos talvez não tão mediáticos.

Essa sensação é perigosa e reside numa não menos perigosa ilusão. A evidência diz-nos que, à mínima dificuldade ou problema maior, essa sensação se desvanece. A acalmia política não pode ser entendida como o “normal” para apreciação da necessidade e avaliação de presença e qualidade de liderança e governação. A recessão de 2007-2008, a emergência do terrorismo, a devastação territorial causada pela instabilidade climática e outras formas de “anormalidade cada vez mais normal” mostraram que as condições de vida de diferentes povos e populações foram seriamente impactadas por diferenças de efetividade na liderança e na governação. Estamos de novo num desses momentos. Lia hoje bem cedo num jornal espanhol que, por mais sensibilidade que tenhamos para as diferenças de contextos político-culturais, a perceção de “gravitas” que temos quando ouvimos Emmanuel Macron ou Pedro Sánchez a dirigirem-se aos seus concidadãos em matéria de crise do CoVID-19 é bem diferenciada. É verdade. As diferenças de peso são claras. Diria que são situações em que António Costa regressa aos seus melhores tempos e todos esperamos que essa convicção se mantenha. É óbvio que tal perceção tem consequências. As mais importantes respeitam ao passado. A prestação nestes momentos tem efeitos retroativos. Compreendemos melhor situações do passado à luz da premência do momento.

Uma outra velha questão respeita à abordagem que vai ser necessária para enfrentar o lado económico da crise viral. Parece hoje inequívoco que as perdas de produto anunciadas, que todos esperamos não se alongarem mais do que dois trimestres consecutivos, apontam para uma recessão de grandes proporções, com manifestação sincronizada num número de países bem mais elevado do que o observado na Grande Recessão de 2007-2008.

Nesse contexto, é inevitável que nos projetemos nos erros graves de gestão macroeconómica que foram cometidos essencialmente na União Europeia. Estou bem recordado de seguir ao pormenor esse período. A União Europeia começou bem avançando para uma política de injeção de investimento público e de liquidez na economia europeia, mas rapidamente sucumbiu à ideologia dos sacrifícios orçamentais, cometendo o sacrilégio de reduzir despesa pública quando famílias e empresas estavam a braços com um longo processo de desendividamento (efetivo), gerando por essa via uma ampliação dos efeitos recessivos. Essa gente é insensível ao sacrifício dos outros. Neste caso, isso não será tão fácil de conseguir, pois a contaminação atingiu todos, simbolicamente. Por isso, é tempo de aprender com os erros do passado e injetar na economia os recursos necessários para minimizar perdas e minimizar o colapso. E não estamos a falar de investimento cuja génese seja alongada no tempo. Estamos essencialmente a falar de injeção imediata de dinheiro, seja por cheque seja por depósito, seja ainda por diferimento de despesas obrigatórias para períodos mais desafogados.

Parte dos macroeconomistas que mais batalharam por uma outra abordagem macroeconómica à crise de 2007-2008 estão aí de novo na luta. Por hoje, deixo-vos com dois desses contributos.

Emmanuel Saez e Gabriel Zucman apresentam no Social Europe o seu testemunho “Keeping business alive: the government will pay”, segundo o qual o Estado deve ser um pagador de curto-prazo e de última instância (link aqui).

Por sua vez, Martin Wolf regressa tão contundente como o esperávamos e no Financial Times num artigo designado de “The virus is an economic emergency too”, (link aqui) no qual também o Estado é encarado como um emprestador e gastador de última instância.
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Não ignoremos que as quedas recessivas de produto produzem efeitos de histerisis, ou seja, a queda no curto prazo traz consequências em termos de produto potencial a longo prazo e a economia mundial já tinha fatores que chegassem rebaixando esse produto potencial (vide a nossa cobertura do tema da estagnação estrutural).

Alguém se atreve a reclamar nestes momentos pelo Estado mínimo?

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