(Não é a instalação do estado de emergência, aliás estabelecido
com tato e inteligência democráticos, que determina a maior complexidade da
equação. É antes a questão de saber em que medida esse estado irá permitir ou
não a convergência entre a gestão sanitária e o combate à recessão económica. Esse sim é que é o principal fator de complexidade acrescida.)
Não sei se já repararam nesta evidência. Já a
dimensão do impacto sanitário da explosão e globalização do Coronavírus estava
perfeitamente compreendida, exceto para os negacionistas do costume, e a
reflexão que existia sobre o seu impacto económico era frágil. Tateava-se, intuía-se,
mas a perceção do impacto recessivo era muito difusa.
Há várias explicações para este “lag”
de compreensão.
Por um lado, globalmente admitiu-se que a
crise sanitária seria mais compacta de efeitos no tempo, ignorando em parte que
para isso acontecer teríamos um cenário desastroso do ponto de vista da
resposta possível do sistema de saúde. Ora, hoje é claro que os efeitos serão
devastadores à escala global e, nem por isso, serão assim tão centrados no
tempo. Ou seja, não temos a certeza se vamos ser capazes de seguir um timing
idêntico ao chinês.
Por outro lado, o mainstream
macroeconómico continua refém de perceções bastante otimistas quanto aos
reequilibradores automáticos das economias de mercado. Ironizando há
economistas teoricamente prontos a mostrar como um fenómeno totalmente exógeno,
o da perceção de manchas solares, pode gerar recessões (a teoria dos ciclos
reais é talvez a mais maluca das sofisticações desta gente) e numa primeira
apanha podem desvalorizar os impactos de um choque sanitário de grandes
proporções.
Finalmente, a convicção existente de que a
globalização das pessoas era a parente pobre das modernas fases da globalização
(económica e financeira) talvez tenha também ajudado a desvalorizar os riscos
da transmissibilidade pandémica.
Ontem, alguns observadores mais atentos (António
Lobo Xavier, por exemplo, no Circulatura do Quadrado) chamaram a atenção de que
o principal fator justificativo do estado de emergência era precisamente
contribuir para que o combate brutal à disseminação do vírus não parasse as
economias. Sim, concordo com essa interpretação, mas isso não significa que se
escamoteie a contradição e a complexidade da equação operacional que temos pela
frente. Os esforços de contenção, de promoção do distanciamento social e do
isolamento necessário esbarram em certos casos brutalmente com a necessidade de
manter alguma dinâmica económica, reorientando em certos casos a produção e
mantendo alguns circuitos de distribuição com vida. O que significa que não são
apenas os profissionais de saúde (verdadeiros heróis) os que estarão na parte
mais vulnerável da exposição à transmissão. Também os trabalhadores e técnicos
que irão tornar possível que partes da economia não quebrem estarão sob risco
enorme.
Por isso, quando assomamos às nossas janelas
e varandas ou esticamos as pernas nos nossos jardins, por exíguos que sejam, e
pressentimos a calma estranha de cidades e aglomerados sem movimento, é mesmo
de uma calma estranha e perigosa que falamos. Aquilo que vai sendo anunciado a
nível europeu e mundial para tentar que a economia não quebre em termos tais
que uma recessão prolongada esteja aí à nossa porta vai revelando que a
perceção foi tardia mas a resposta mais rápida do que o esperado. Mas a
verdadeira questão é se esse abrir dos cordões à bolsa impacta rapidamente o
tecido económico ou mesmo se já não vai encontrar algum do tecido económico que
deveria impactar.
Até lá, os mais favorecidos e melhor
instalados (Pacheco Pereira teve carradas de razão ao invocar para esta questão
a desigualdade e os seus efeitos tremendos em termos de fragilidade e
vulnerabilidade sociais) irão estruturar as suas novas rotinas, dar um impulso
extraordinário às comunicações e às práticas colaborativas digitais, ler religiosamente
a meio ou ao fim da manhã o boletim diário da DGS, atualizar as suas curvas e
funções, perceber cruelmente que a questão da descarbonização da economia
afinal é mais “fácil” do que se pensa (reformulando o modelo). Mas isso é a
parte mais facilitada da equação. Os meandros mais duros da sua resolução não
passarão por aí.
Nota final
Quis
mais uma vez o destino que a minha já longa vida profissional em matéria de
andarilho do planeamento (agora andarilho digital) me conduzisse a prospetivas
que eram para ser desenhadas em função de contextos mais promissores e não no
meio de uma pandemia e dos seus efeitos devastadores em termos sanitários e
económicos. A incerteza estrutural não nos abandona.
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