quarta-feira, 25 de março de 2020

TESTEMUNHOS (2)



(Os livros vão ser neste isolamento necessário uma das nossas companhias mais fiáveis e fieis. Por isso, é natural que eles sejam uma fonte inesgotável dos testemunhos que vamos encontrando no desfiar do tempo desta crise. É o caso desta imaginativa forma de organizar a biblioteca.)

EM TUDO HAVIA BELEZA (ORDESA)”de Manuel Vilas foi das coisas mais impactantes que li nos últimos dois anos, uma das mais despojadas e simultaneamente intensas e sensíveis narrativas sobre os nossos, a família mais chegada, o nosso lugar de estimação. Talvez o tenha sido pelo facto do contacto com o livro coincidir com a morte da minha Mãe, mas acho que o livro está muito além das nossas circunstâncias.

Fui, por isso, irremediavelmente atraído por esta perspetiva de Manuel Vilas sobre os livros em tempos de isolamento, publicada pelo El País (link aqui):

“(…) Um livro não pode substituir a brisa, as ruas, as árvores, as pessoas. Essa é a grande tragédia dos livros. São espelhos. Mas não são a vida. São clausura. Sabendo isto, dedico-me a ler todos os livros que posso. Na minha casa procuro que os livros estejam à vista, uma nova forma de organizar a biblioteca, que consiste em que os livros se sentem nas cadeiras, se acomodem na cama, subam às mesas, encerrem-se no quarto de banho, se metam no frigorífico. Há uma posição inquietante para um livro. É o que chamo “posição em estado de ameaça”. Consiste em deixar em cima da mesa principal, que sabes que te vai agradar mas que não lês. Está ali, à espera. Está a ameaçar-te. Passam os dias. E a ameaça é cada vez maior. É uma maneira pessoal de desfrutar da literatura, sentindo a sua importância mas não lendo. Cada vez que passo por ali, ali está o livro. Que livro é? Semeei a minha casa de livros ameaçadores.”

Confesso que não tenho livros no frigorífico. Mas tenho vários a ameaçar-me por diferentes pontos da casa e sobretudo por diferentes poisos desse escritório hoje iluminado por uma luz límpida de Primavera.

E tenho saudades dos que me ameaçariam em Seixas, nessa casa fechada à espera de melhores dias e praticamente já com a certeza de que não verei este ano as aleluias a florirem pujantemente voltadas para Santa Tecla. Até ontem em Caminha não havia pelos registos do Expresso nenhum infetado.

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